Paz desarmada e Paz desarmante
Os 12 anos do pontificado do Papa Francisco foram marcados pelas denúncias contra as guerras, em especial, os conflitos na Faixa de Gaza e na Ucrânia, mas também no Sudão, no Congo, no Líbano, no Iêmen e na Síria.

Edgar Silva foi padre e é investigador no Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa e dirigente do PCP.
Em nome da ousadia da paz, Francisco arriscou visitar zonas de guerra para dar voz aos esquecidos, fez viagens a zonas com conflitos ignorados, quis expor ao mundo graves crises e dar rosto às vítimas: na República Centro-Africana (2015) foi o primeiro Papa a visitar um país em guerra ativa e os seus gestos tiveram incidências políticas e humanitárias significativas; decidiu ir ao Iraque (2021) ao encontro de vítimas do ISIS em Mosul; em 2021, decidiu agir ante a violência em Cabo Delgado; no Sudão do Sul, em 2023, fez o inédito retiro com líderes rivais (Kiir e Machar).
Francisco teve um papel ativo na defesa da paz durante os conflitos na Ucrânia e em Gaza. Entre outras diligências, o Cardeal Zuppi foi enviado como mediador em 2023, reunindo-se com líderes ucranianos, russos e com o presidente dos EUA, Joe Biden. Nas relações com autoridades israelitas e palestinianas, o Patriarca Latino de Jerusalém, Pizzaballa, teve por mandato promover o diálogo e teimar por cessar-fogo humanitário em Gaza.
Muito para além do impacto humanitário e simbólico, Francisco mostrou-se capaz de influenciar debates globais. Denunciou a indústria da guerra, o comércio de armas e os interesses económicos por trás dos conflitos armados. Legitimou causas, influenciou lideranças, mobilizou redes católicas, pressionou governos em face de conflitos que não deixava esmorecer na agenda internacional.
Mas a mudança axial foi o repensar da teoria da guerra justa. Se outros Papas já tinham questionado ou limitado tal aplicação, Francisco inaugurou um novo tempo para a Paz: nada justifica guerras humanitárias, defensivas ou preventivas. Hoje não é possível sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar duma possível guerra justa.
Este pontificado estabelece uma viragem histórica: em vez de debater quando a guerra poderá ser aceitável, Francisco afirma que só a paz é justa. "A verdadeira força não está nas armas, mas no diálogo" (República Centro-Africana, 2015).
Francisco redefiniu o posicionamento da Igreja sobre a guerra justa. "A guerra é sempre uma derrota da humanidade" (2022). Segundo Francisco, nenhum conflito armado, mesmo com motivos alegadamente legítimos, preserva a dignidade humana ou resolve raízes do problema.
Francisco é o primeiro Papa a considerar a teoria da guerra justa como insustentável. Ele reforça que a guerra nunca traz soluções reais, mas sim destruição e sofrimento duradouro. Na Fratelli Tutti (2020), Francisco não apenas questiona a validade da guerra justa, mas declara-a ultrapassada (nº 258): "A guerra é a negação de todos os direitos [...] Não se pode mais pensar na ‘guerra justa’, apenas na paz justa".
A “ética da paz justa” é um legado irreversível de Francisco para toda a humanidade.
O novo Papa, Leão XIV, desde o início do seu pontificado fez por explicitar o compromisso de quem quer dar prosseguimento ao legado de Francisco. Na Praça de São Pedro, no domingo 11 de maio de 2025, o Papa Leão XIV, reafirmou essa sequência: «como várias vezes afirmou o Papa Francisco, eu também gostaria de me dirigir às autoridades do mundo, repetindo o apelo sempre atual: 'nunca mais à guerra'».
Ao assumir em suas mãos o clamor das vítimas da guerra na Ucrânia e da faixa de Gaza, tal como Francisco, continuou Leão XIV: «Que haja um cessar-fogo imediato».
Aliás, as primeiras palavras do novo Papa falaram logo da Paz. E, depois, como anúncio programático deste pontificado, da Terra Santa à Ucrânia, do Líbano à Síria, do Oriente Médio ao Tigré e ao Cáucaso, ante a violência e as guerras, Leão XIV apelou à «paz desarmada e desarmante».
Na primeira semana de pontificado, Leão XIV desenvolveu os princípios que fundamentam a recusa da gramática da guerra. Em lugar da “guerra justa”, apontou as vias do diálogo e da negociação. Em alternativa à “guerra legítima”, proclamou que o recurso às armas não resolve os problemas, antes os agrava. Ao contrário da absurda corrida ao armamento, exortou à coragem do desarmamento.
O Papa Leão XIV recebeu na sexta-feira, 16 de maio de 2025, em audiência na Sala Clementina (Vaticano), os membros do Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé. No seu discurso, Leão XIV indicou-lhes «a vontade de deixar de produzir instrumentos de destruição e de morte, porque, como recordou o Papa Francisco na sua última Mensagem Urbi et Orbi: ‘Não é possível haver paz sem um verdadeiro desarmamento!».
Enquanto uma boa parte dos Estados e das potências mundiais forçam a uma corrida ao armamento ou quando, através de outros discursos, se somam argumentos para uma paz armada, o Papa intervém em contracorrente: não apenas proclama uma paz desarmada, como também desarmante, isto é, ativamente apostada no desarmamento.
Portanto, os compromissos já afirmados por Leão XIV apontam para o aprofundamento de uma cultura da paz e para uma contraposição à lógica do militarismo.
Por conseguinte, a tarefa da paz tornou-se um dever maior para o agir dos católicos e para a Igreja Católica.
30/05/2025
A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.