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Os crucificados menores de Saramago (3):
Teologia de Saramago

Tal como os demais romances de Saramago e, antes de mais, no seu Evangelho sobressai aquele que é um dos maiores legados do nosso Nobel da Literatura: o alçar a humanidade ao papel de principal ator da existência.

Os crucificados menores de Saramago (3):
Teologia de Saramago

Edgar Silva foi padre e é investigador no Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa e dirigente do PCP.

No contador da História e de histórias que nos fascinam e apaixonam é o humano que interessa. Em José Saramago importa a humanidade detentora do seu próprio destino e única responsável pelos seus próprios atos.

No texto de Saramago “ao homem nada é impossível”. Ele é capaz de cuidar do seu próximo, é capaz de inventar, de criar, de fazer a história prosseguir. Tal como a vontade humana é capaz de amar de forma incondicional, o génio humano (tal como Blimunda, Baltasar e Bartolomeu Lourenço) é capaz de erguer a passarola; é capaz de superar obstáculos (como na saga dos Mau-Tempo) e é capaz, até mesmo, de mudar o rumo da história. Precisa, no seu Evangelho, de matar a inflexível imagem do Deus todo-poderoso, como condição para que se liberte a humanidade.

Quando é exposta a humana fragilidade, a nossa cegueira, o medo da morte, as capacidades de destruição, logo Saramago exibe o homem ao próprio homem, a capacidade de sublimar, de compaixão, do altruísmo, da liberdade, da justiça, do amor. Demasiado humano, o humano é mortal, no entanto, aspira à imortalidade; está sujeito ao tempo, porém, aspira à divindade; é criatura, mas deseja ser criador.

Tal como todos nós, no “Evangelho de Saramago”, o Cristo Homem traz consigo todas as marcas de nossa humana fragilidade e de nossa força divina. E é em nome da humanidade que Saramago, através dos tensos diálogos, das suas alegorias, da elaboração de grandes metáforas e parábolas, nas diversas formas de confronto do humano com o absurdo, com o desconhecido, através da ficção narrativa, nos seus retratos literários, em tudo persegue um objetivo: a tentativa de entender o que significa o ser humano.

No Centenário do nascimento de Saramago será destacada a atualidade da sua obra, relida aquela literatura que continua a habitar e a inquirir os nossos dias. Para além de tudo isso, entre muitos outros aspetos, importará valorizar, de sobremaneira, a acutilância da sua palavra sobre o muito que nos falta para chegarmos a ser verdadeiramente humanos, com a insistência de uma indomável confiança na luta dos Povos, uma esperança que não aceita qualquer forma de resignação, nem a exploração, nem a desigualdade que desfigura a comum humanidade dos humanos.

Muito devemos a Saramago, mas, em particular, “como evangelista”, com ele aprendemos a dizer como ainda nos falta tanto caminho para chegarmos a ser autenticamente humanos. E é, por isso, que podemos dizer quanto o “Evangelho de Saramago” nos remete para uma profunda reflexão teológica, reporta-nos para universos da teologia antropológica dos grandes mestres, como o foi Karl Ranher, ou como nos sugere a mais pura teologia da esperança.

Tal como afirmou Max Horkheimer: “a teologia, para mim, é a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não seja a última palavra” (1).

21/11/2022

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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(1) Max Horkheimer, Elipse da Razão (Zahar: Rio de Janeiro, 1976), 18.

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