top of page

Os crucificados menores de Saramago (2):
O que há entre Saramago e Deus?

Sendo ateu, Saramago revela-se apegado à ideia de Deus. A sua literatura manifesta uma vasta incidência de temas bíblicos. Não é só em O Evangelho Segundo Jesus Cristo” que Deus, enquanto tema, está presente na obra de Saramago: Deus lá está em Terra do Pecado, em História do Cerco de Lisboa; em Levantado do Chão; em Memorial do Convento; em Todos os Nomes; nas peças de teatro In Nomine Dei e Vida de São Francisco de Assis; nos romances Ensaio Sobre a Cegueira e Caim.

Os crucificados menores de Saramago (2):
O que há entre Saramago e Deus?

Edgar Silva foi padre e é investigador no Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa e dirigente do PCP.

Selam Ferraz, no seu estudo sobre “um certo perfil de Deus” em Saramago, refere que “ao longo de sua obra, ele vai apontando perfis de Deus que o incomodam. Em Terra do Pecado, seu primeiro romance, critica um Deus que não gosta de prazer e de sexo; em Memorial do Convento, critica aqueles que edificam grandes catedrais para Deus; na peça de teatro In Nomine Dei, critica as guerras que se fazem em nome de Deus. Finalmente em O Evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago questiona o Deus de Amor que deixa que seu único filho seja crucificado e que não concede o perdão a Lúcifer.” (1)

Mais do que questionar Deus, Saramago rejeita-o, rejeita o Deus cruel, sanguinário, vingativo. Saramago recusa Deus em defesa da humanidade e, por isso, coloca-se do lado de Jesus. A recusa de Deus é, ao mesmo tempo, acompanhada da valorização da figura de Jesus.

Em contraposição à crueldade de Deus e à arrogância de Deus, Saramago identifica-se com o personagem Jesus. Tanto assim que o narrador do romance nem precisaria declarar - mas declara – que, enquanto no Evangelho Deus é o anti-herói, Jesus é o evidente herói daquele evangelho (2). Deus é o grande antagonista no “Evangelho de Saramago”, porque, enquanto Jesus e, diga-se, o Demónio procuram compreender os humanos, Deus procura submetê-lo à sua vontade, alargar o número de fiéis e o poder que tem sobre eles.

Saramago destaca a figura humana, demasiado humana de Jesus. Se Saramago rejeita Deus é para exaltar, na figura de Jesus, a figura humana, o homem e a sua dor, o homem e a sua revolta.

Em Saramago há a identificação de Jesus com a humanidade, num processo narrativo que vai ficando mais claro nos diversos episódios que o romance recolhe da sua vida, havendo mesmo uma passagem do “Evangelho de Saramago” na qual Jesus, de certo modo, recusa Deus em favor dos homens: “Não podes ir contra a vontade de Deus - diz-lhe Pedro. Não - responde Jesus — mas o meu dever é tentar” (3). Ou seja, em Saramago o Filho de Deus, em vez de se entregar aos desígnios do Pai celestial, ousa questioná-lo em nome da própria humanidade e em favor da humanidade.

Em contraposição aos homens sem vontade ou de vontade adormecida, que deixam de ser verdadeiramente humanos, contrários ao próprio movimento da História, existe um novo mundo por erguer, uma outra força que radica na vontade humana, que liberta os povos da religião institucionalizada, que comporta uma imensa capacidade criadora e transformadora, que possui potencialidades para superar todas as marcas da nossa humana fragilidade. No “Evangelho de Saramago”, o Cristo Homem traz consigo todas as marcas da nossa humana fragilidade e, correlativamente, da nossa força divina. E é neste sentido que na humanidade há uma infinita vontade de transformação do mundo.

Nesta leitura do Nobel português da literatura poderá dizer-se que no “Evangelho de Saramago” o Cristo Homem revela à humanidade a grandeza do humano, o personagem Jesus manifesta o quanto nos falta para chegarmos a ser verdadeiramente humanos.

18/11/2022

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

______________

(1) Selma Ferraz, “Quais são as faces de Deus?”, IHU 299, 6 Jul. 2009.
(2) José Saramago, O Evangelho Segundo Jesus Cristo (Lisboa: Caminho, 1998), 239.
(3) Ibid., 436.

bottom of page