"Os católicos da Revolução e o PCP" - Micro-biografia de Maria de Lurdes Pintassilgo
Inserido num ciclo dedicado às comemorações dos 50º Aniversário do 25 de Abril, o Terra da Fraternidade divulga micro- biografias de algumas dos católicos com um papel de destaque no combate ao regime fascista e conquista da democracia.
Todas as micro-biografias são extraídas da tese de Doutoramento de Edgar Silva: "Vendaval de utopias. Do catolicismo social ao compromisso político em Portugal (1965-1976). Os católicos da Revolução e o PCP."

Maria de Lurdes Pintassilgo tem um percurso de vida que a situa no amplo universo das experiências históricas que tipificam os “católicos da revolução”. Como muitos outras pessoas que, antes de 25 de Abril de 1974, procuravam no interior da sociedade formas organizadas de influenciar e transformar o regime, Maria de Lurdes Pintassilgo, quando emergiu o movimento impetuoso da revolução, quis «ser a revolução», «estar dentro da revolução» (1).
Na interpretação da história, na sua reflexão sobre o cristão e a revolução, escreveu Maria de Lurdes Pintassilgo: «Urge ser a revolução, captar o seu movimento, entrar nela como num mar encapelado e deixar rebentar cada onda, ora furando-a, ora sendo arrastado conscientemente por ela» (2).
Maria de Lourdes Pintasilgo distinguiu-se em várias áreas da vida pública nacional e internacional. E exerceu diversas funções públicas durante o chamado Estado Novo português. Aceitou ser designada Procuradora à Câmara Corporativa nas duas últimas legislaturas daquele órgão (X, XI, 1969–1974). Entre 13 de maio de 1970 e 23 de setembro de 1973, trabalhou como consultora junto do Secretário de Estado do Trabalho e Previdência, do Ministério das Corporações e Previdência Social. Presidiu ainda ao Grupo de Trabalho para a Participação da Mulher na Vida Económica e Social. Manteve-se no Ministério das Corporações e Previdência Social até à instituição da Comissão para a Política Social relativa à Mulher, por decreto n.º 482/73, de 27 de setembro, da qual foi nomeada presidente.
Com o eclodir da Revolução de Abril, Maria de Lurdes Pintassilgo vive «plasmada, atravessada, pela revolução fundadora» (3).
Ainda pensou que, nomeadamente, através da designada “primavera marcelista”, o regime encetasse possibilidades de mudança, mas, como o reconheceu Maria de Lurdes Pintassilgo, a revolução tornou-se necessária. Nas circunstâncias políticas e no meio das contradições que abalavam a natureza do regime, pouco sentido faria apenas mudar de governo, nem mesmo circunscrever-se à mudança de regime. Em Portugal, em 1974, era imperiosa a revolução.
A leitura cristã dos sinais dos tempos, a compreensão dos acontecimentos a partir do seu lugar interpretativo na Igreja Católica, fizeram com que Maria de Lurdes Pintassilgo se tivesse inserido profundamente na revolução, tal como tantos outros sectores do catolicismo em Portugal aderiram de forma efusiva à “Revolução dos Cravos”.
Acerca da situação revolucionária e do seu sentido, afirmou: «Temos de derrubar a antiga ordem e as suas estruturas; temos de construir novas estruturas; temos, sobretudo, de atender às necessidades essenciais do povo» (4).
A revolução que se exigia «global e em constante criação», segundo Maria de Lurdes Pintassilgo, teria de «ser rutura para poder libertar novas energias» (5) e, com o dinamismo da imaginação, tornar possível a invenção do novo.
Abrira-se um tempo novo: «uma nova maneira de relação entre as pessoas. Urgência na resolução dos problemas leva a partilhar, a conversar, a discutir. A convivência social tem um cariz de convocatória personalizada, intransmissível, urgente» (6).
No imenso movimento popular em que todas as reivindicações ganhavam voz e se faziam ouvir, o processo que se viveu em Portugal a partir de 25 de Abril de 1974 tocou toda a gente, todas as camadas sociais, todas as gerações, todas as instituições. Aquele processo «foi ao fundo das coisas, mexeu com os sistemas instalados, questionou os direitos adquiridos, abalou as seguranças dos privilegiados» (7).
Com a revolução de 25 de Abril de 1974, Maria de Lurdes Pintassilgo foi nomeada Secretária de Estado da Segurança Social no I Governo Provisório, Foi Ministra dos Assuntos Sociais nos II e III Governos Provisórios entre 17 de julho de 1974 e 25 de março de 1975. A revolução foi aí vivida também a partir dos lugares de governo da República, em que se lançaram os pilares das políticas de proteção social, se projetou o novo edifício do sistema de Segurança Social e se ousou configurar a democracia social.
Para o prosseguimento das conquistas da revolução aquela governante defendeu a “via socializante” como a orientação programática para vencer injustiças sociais e para combater as desigualdades inaceitáveis: «os problemas sociais só podem resolver-se com socialização completa » (8). Os programas da governação naquele período revolucionário, segundo Maria de Lurdes Pintassilgo, teriam de prosseguir fins socializantes como forma de «derrubar a antiga ordem e as suas estruturas» (9) .
O que se viveu em Portugal entre 25 de abril de 1974 e 2 abril de 1976 -data da proclamação da nova Constituição – correspondeu a uma viragem profunda e estrutural na sociedade portuguesa. «Os pilares rígidos do sistema existente são destruídos. Mas nesta particular revolução não o são à maneira irracional de um sismo – são-no sistematicamente, “golpe a golpe”, etapa por etapa» (10) .
Para Maria de Lurdes Pintassilgo a revolução foi vivida intensamente, como «festa e luta», num «clima de euforia», «em tempo alucinatório»: «Não havia sucessão linear no espaço dado que os acontecimentos significativos se multiplicavam indefinidamente.
Tão pouco havia abertura no tempo porque os factos inundavam todo o campo de reflexão e fechavam a porta do futuro real.
Estas eram as coordenadas espaço-tempo revolucionário que vivíamos» (11) .
Enquanto isso, a contrarrevolução agigantava-se pelas mãos dos “inimigos de Abril”. Outros tomavam a cidade para a reconstruir. Obstáculos graves eram colocados aos fins socializantes. Instalavam-se dificuldades à rutura e às novas dinâmicas criativas. Prevaleceu «o calor dos ódios concentrados» (12).
Logo na queda do III Governo Provisório, a 26 de março de 1975, no qual Maria de Lurdes Pintassilgo fora Ministro dos Assuntos Sociais, existia um nítido entendimento de que chegara a morte da revolução. Havia um sentimento de tristeza e mágoa pelo revés da história, pelo insucesso, pelo morrer do processo revolucionário: «Morte de nós. Morte das ilusões que fizemos crescer. Morte da revolução que não fomos capazes de fazer triunfar.
Não fomos capazes da revolução. Nós. Não fomos capazes de inventar o novo. Não fomos capazes de inventar a alternativa. Não fomos capazes de derrotar os slogans e de ridicularizar a monotonia dos modelos já sabidos. Não fomos capazes de negar a mentira. Não fomos capazes de forçar o que era evidente. Não fomos capazes de Abril» (13).
Nos apontamentos pessoais manuscritos por Maria de Lurdes Pintassilgo, depois da euforia de “ser a revolução”, sucederam-se palavras de desilusão: «A revolução fugiu-nos, fugiu-me, fugiu» (14).
Nos dias de março a maio de 1975, foram confidenciadas “num caderno diário” as palavras sobre a revolução que morria em Portugal. Ainda que estivessem afastados no tempo o “25 de novembro”, os dias de abril de 1976 e a correspondente aprovação da Constituição – onde foram consagradas fundamentais conquistas do processo revolucionário – havia, da parte de Maria de Lurdes Pintassilgo, a assumida consciência de que as gentes da revolução tinham sido vencidas.
No entanto, aquela “católica da revolução” diz não ter desistido, nem renunciado ao ideal revolucionário. Maria de Lurdes Pintassilgo terá dito que continuaria a viver a esperança da possibilidade da “revolução fundadora”. Escreveu: «Recuso-me a aceitar uma derrota histórica […] No fundo, move-me ainda a inconsciente expectativa que da revolução manipulada e prostituída nasça corajosamente a revolução que vença o “mau olhado” da história e salve, por um qualquer exorcismo tradicional e mágico, desta doença de imaginação em que dolorosamente se esvai a alma nacional» (15).
Entretanto, a “Revolução de Abril” tinha consagrado aspetos essenciais da democracia, abrira possibilidades de concretização da democracia política e económica e terá ficado aquém da democracia social. Porém, depois daqueles anos de 1974 – 1976 esmoreceu o ideal revolucionário e o impulso socializante deixou de constituir um compromisso político. A partir de então a “revolução fundadora” foi omitida da orientação política.
21/02/2025
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(1) Fundação Cuidar o Futuro – Arquivo Maria de Lurdes Pintassilgo. Notas manuscritas sobre a praxis cristã no contexto da revolução do 25 de Abril de 1974, [s. d. 1975], p. 20. Pasta: 0213.025.
(2) Idem.
(3) Cf. Fundação Cuidar o Futuro - Arquivo Maria de Lurdes Pintassilgo 11/ março/1975, p. 2. Pasta: 0076.009.
(4) PINTASSILGO, Maria de Lurdes – Diário Popular 20/janeiro/1975.
(5) Fundação Cuidar o Futuro – Arquivo Maria de Lurdes Pintassilgo. Mesa-Redonda na Gulbenkian com a ONU 20/janeiro/1975. Pasta: 0099.003.
(6) Fundação Cuidar o Futuro – Arquivo Maris de Lurdes Pintassilgo [1975], p. 4. Pasta: 0076.016.
(7)Fundação Cuidar o Futuro – Arquivo Maria de Lurdes Pintassilgo. Les Femmes dans le Processus Revolutionnaire Portugais março/abril 1976. Pasta: 0044.007.
(8)PINTASSILGO, Maria de Lurdes – Capital 25 jan. 1975.
(9) Idem.
(10) Fundação Cuidar o Futuro – Arquivo Maria de Lurdes Pintassilgo 1975, p. 1. Pasta: 0076.014.
(11) Fundação Cuidar o Futuro – Alcance y limites de la revolución portuguesa. Comunicação manuscrita. [Proferida no Centro de Estudos Económicos e Sociais do Terceiro Mundo. México, 1/abril/1981] p. 6 -7. Pasta: 0024.032.
(12) Fundação Cuidar o Futuro – Arquivo Maria de Lurdes Pintassilgo, Manuscrito 11/maio/1975, p. 1. Pasta: 0076.009
(13) Fundação Cuidar o Futuro – Arquivo Maria de Lurdes Pintassilgo. Manuscrito 28/março/1975, p. 1. Pasta: 0076.005.
(14) Fundação Cuidar o Futuro – Arquivo Maria de Lurdes Pintassilgo. Manuscrito 10/maio/1975, p.1.
(15)Fundação Cuidar o Futuro – Arquivo Maria de Lurdes Pintassilgo. O nó da questão 27/novembro/1977, p. 2. Pasta: 0024.035.