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Dia Mundial da Paz e as confluências com o movimento da paz

O Movimento da Paz constitui um amplo e plural movimento social com importantes contributos na história contemporânea para a transformação social, política e cultural de diversos países.

Dia Mundial da Paz e as confluências com o movimento da paz

Edgar Silva foi padre e é investigador no Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa e dirigente do PCP.

Com enraizamentos ancestrais, de sobremaneira, depois da II Guerra Mundial, na Europa as iniciativas contra a guerra e pela paz foram agregando, de forma gradual, sectores católicos na dinamização daquele movimento social, designadamente, através de propostas apresentadas pelo Conselho Mundial da Paz.
O Movimento da Paz, que nasceu em França no pós-guerra, – fundado em fevereiro de 1948 – contou com relevante participação de cristãos. Foi um movimento crucial na definição da natureza do Conselho Mundial da Paz e na dinamização da causa da paz em vários países.

Ao longo da década de 1950, o Movimento da Paz em Portugal correspondeu a uma composição plural no qual confluíram organizações não só das áreas políticas, sociais e do campo partidário, como também desaguaram diferentes culturas cívicas, convicções religiosas e diversos estratos sociais. O processo de mobilização dos cristãos aconteceu preponderantemente na base do movimento social, nas «comissões da paz», nas localidades, em meio laboral, nas universidades, onde, sobretudo, militantes da JOC e da JUC fizeram parte do Movimento da Paz.

Até ao início dos anos de 1960, em Portugal, o engajamento dos católicos em movimentos pela paz circunscreveu-se a situações que não corresponderam a processos sociais muito impactantes, situação que se revelou bem diferente das dinâmicas de setores do catolicismo noutros países, como, por exemplo, em França. Neste país foi muito significativa a integração de católicos, que se refletiu com forte visibilidade política, no apoio e na intervenção ativa no lançamento do Conselho Mundial da Paz. O mesmo se poderá dizer em relação ao alcance público da participação de católicos na campanha em favor do Apelo de Estocolmo. No caso dos países francófonos, a expressão des chrétien stokolmiens serviria para designar os muitos de entre os cristãos que se envolveram naquela campanha pela paz.

A intervenção de sectores católicos contra a guerra ganhou maior expressão orgânica na sociedade portuguesa a partir de 1964, através do movimento de solidariedade com o povo vietnamita e contra a «agressão americana» no Vietname. E neste afluxo intervieram as várias iniciativas dinamizadas por sectores católicos.

A luta contra a guerra e a invasão norte-americana no Vietname possibilitou a configuração duma frente social e política, envolvendo organizações do movimento associativo popular, sectores do movi¬mento estudantil e do movimento operário e sindical, que permitiram formas de participação pública de católicos em conjunto com militantes comunistas e de outros partidos em manifestações que afrontavam Salazar e Caetano, num tempo em que a solidariedade com o povo do Vietname também se convertia em iniciativa anticolonial, se traduzia em protesto político contra a guerra que Portugal prolongava em África. Ou mais precisamente, havendo um sentimento crescente antiguerra colonial, as manifestações contra a Guerra Colonial eram convocadas como manifestações contra a Guerra no Vietname.

Particular alento para a mudança da consciência católica em Portugal quanto à Guerra Colonial foram os ensinamentos dos Papas João XXIII e Paulo VI em relação à guerra, na ine¬quívoca condenação do colonialismo, nos compromissos em favor de uma cultura da paz.

Alguns dos documentos de Roma e de outras igrejas, textos dos bispos franceses sobre a guerra em Argel, a tomada de posição de intelectuais católicos, a Carta do Bispo do Porto a Salazar, os textos dos «dias mundiais da Paz», foram policopiados, «passados a estêncil», circularam clandestinamente, através das redes informais, passaram de mão em mão, nas organizações, no movimento associativo, e deram contributos relevantes para a mudança de consciência quanto à guerra e ao regime de Salazar e Caetano.

Naquele contexto, teve especial força catalisadora a iniciativa de Paulo VI de instituir o “Dia da Paz”, a celebrar no primeiro dia de cada ano, a partir de 1968. As dinâmicas preparatórias da celebração daqueles dias e as mensagens de Paulo VI para o Dia Mundial da Paz deram inspiração, alento e encorajamento para aquela que foi uma das principais forças transformadoras da sociedade portuguesa: a luta contra a guerra.
É nesse movimento que emerge a Vigília de S. Domingos, em Lisboa, na passagem de 31 de dezembro de 1968 para 1 de janeiro de 1969 e a “Cantata da Paz” (letra de Sofia Mello Breyner, cantada por Francisco Fanhais), composta para aquele que foi um acontecimento proeminente, pelo que comportou de confluência de uma longa caminhada na formação da nova consciência de setores do catolicismo em relação à Guerra Colonial e na afirmação pública dum confronto com o Estado Novo.

Por todo o País sucederam-se as mais diversas formas de celebração da paz, criando condições para que em muitos locais emergissem outras formas de aproximação crítica aos proble¬mas da Guerra Colonial.
Da conjugação das iniciativas de católicos em Portugal durante os primeiros anos de 1970 poderemos falar dos católicos do movimento da paz ou, segundo a designação de Nuno Teotónio Pereira, do «movimento cristão contra a Guerra Colonial».

Deste movimento social nasceu a Vigília da Capela do Rato, a 30 dezembro de 1972, um marco geodésico de um novo patamar da capacidade de iniciativa de setores católicos contra a Guerra Colonial, de uma dinâmica mais alargada e pública de compromisso com implicações políticas, de envolvimento social, como também de audaciosa proposta celebrativa que, tal como aconteceu noutras partes do País, adquiriram encadeamentos cada vez mais inconvenientes à ditadura instalada na sociedade portuguesa.

Desse movimento é uma componente significante a resolução, em julho de 1973, de «cristãos de grupos paroquiais, comunidades de base, congregações religiosas, movimentos da Ação Católica» de constituir um movimento Justiça e Paz de âmbito nacional.

Nos nossos dias, a intervenção do Papa Francisco acerca da paz, a sua denúncia do absurdo da guerra, dessa guerra que nos toca por causa do que significa a Palestina, mas também a Ucrânia, e de tantas outras guerras que não nos tocam, Kivu, Iêmen, Mianmar com os Rohingya, a sua palavra sobre o mundo em guerra, assim como as suas mensagens para os “dias da paz” desafiam, em especial, os católicos a um agir consequente em favor da paz.

Tal como no passado uma vanguarda do catolicismo se deixou mobilizar pelo magistério da paz para uma outra participação política, revelando uma forte demarcação em relação à ditadura de Salazar e Caetano, também agora, os católicos são confrontados pela palavra profética do Papa Francisco, com o seu repto ao dever de agir, assumindo formas de protagonismo na luta contra a lógica da guerra.

29/12/2023

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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