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A fé torna necessária a política

Escreveu o teólogo da libertação: “cumpre ter sumo cuidado em não substituir um cristianismo do além por um do futuro; se um esquecia esse mundo, o outro corre o risco de descurar um presente de miséria e injustiça e de luta pela libertação” (1).

A fé torna necessária a política

Edgar Silva foi padre e é investigador no Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa e dirigente do PCP.

Edifica-se, ainda hoje, uma crítica do cristianismo dissociado da práxis, insuficiente nas análises e na compreensão da ação política, porque circunscrito ao terreno das abstrações, ou seja, que não levaria a sério o domínio do político, porque ficaria descurado o terreno das implicações concretas, complexas e dialéticas da práxis histórico-política, do serviço à libertação concreta e material do ser humano.
Aquele cristianismo teria subtraído à escatologia e à esperança a sua vertente social, cósmica e política, teria descurado os fundamentos do potencial crítico e libertador da fé cristã diante dos acontecimentos. Em consequência de uma errada compreensão da Páscoa, aquele cristianismo estaria afastado de onde lateja o pulso da história, de onde tanta gente e classes sociais pugnam por se libertar da exploração e opressão.

Mas, persiste no cristianismo uma outra compreensão da esperança como um “esperar ativo". Tal espera constitui um inconformismo face às condições atuais do mundo, implica o sentido do intolerável perante as injustiças da sociedade e ante as desconformidades da vida, requer a inconivência e a insubordinação na história, que precisa ser apressada na sua transformação. Tal apressar refere-se à urgência do compromisso, da mobilização das vontades em direção ao futuro anunciado, de modo a antecipar o futuro esperado. De acordo com Jürgen Moltmann, há um sentido do escatológico que obriga a esse apressar da história, que na prática significa “não aceitar as coisas como elas são hoje, mas vê-las como podem ser naquele futuro e realizar agora esse poder ser significa fazer jus a esse futuro” (2).

Há neste outro cristianismo o olhar para o futuro e o projetar de uma nova realidade, numa orientação para a ação e para atuação daquele que espera. Desta forma, o amanhã anunciado ganha força material e presença na realidade vivida. Como o define Moltmann, “em virtude da esperança não esmorecemos, não desanimamos de nós mesmos, mas nos mantemos irreconciliados e insubmissos num mundo injusto e de morte” (3).

Nesta sequência, o cristianismo estaria obrigado a ser motor da história, a esperança, na medida em que se une inseparavelmente ao agir transformador na história, teria uma clara e enérgica incidência no político, no espaço comum de que é feita a praxis social. A fé (a esperança) tornaria necessária a política. A esperança deveria impulsionar um dinamismo irresistível de compromisso na transfiguração da vida e da história.

Se a “divinização da política é uma superstição que os cristãos não podem permitir-se” (4), embora a esperança implique o agir, como uma disciplina da esperança, a política, pelo contrário, também tornaria possível (a fé) a esperança. O agir, essa embriaguez lúcida por uma realidade magnífica a descobrir através do avanço para diante de todo o universo, tornaria possível a responsabilidade da esperança. Comprovaria a verdade dos compromissos.

Aliás, a “responsabilidade da esperança” (1Pe 3,15) corresponde a uma obrigação dos cristãos, é uma incumbência que transforma a comunidade cristã num constante alvoroçar dentro de cada sociedade (5), sendo esperança pelo agir.

As tarefas políticas comprovariam a verdadeira generosidade para com o futuro, dando tudo ao presente na edificação da Cidade Outra, recriando e renovando, ao mesmo tempo, o vigor da esperança. Porque cada vez mais se sabe que, um dia não muito longe não muito perto, acontecerá a infindável festa da alegria.

30/09/2022

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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(1) Gustavo Gutiérrez, Teologia da Libertação. Perspetivas (São Paulo: Loyola, 2000), 274.
(2) Jürgen Moltmann, Ética da esperança (Petrópolis: Vozes, 2012), 21.
(3) Moltmann, No fim, o início: breve tratado sobre a esperança (São Paulo: Loyola, 2007), 115.
(4) Moltmann, Teología política, ética política (Salamanca: Sígueme, 1987),15.
(5) Cf. Moltmann, Teología de la esperanza (Salamanca: Sígueme, 1981), 28.

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