"Os católicos da Revolução e o PCP" - Micro-biografia de Felicidade Alves
Inserido num ciclo dedicado às comemorações dos 50º Aniversário do 25 de Abril, o Terra da Fraternidade divulga micro- biografias de algumas dos católicos com um papel de destaque no combate ao regime fascista e conquista da democracia.
Todas as micro-biografias são extraídas da tese de Doutoramento de Edgar Silva: "Vendaval de utopias. Do catolicismo social ao compromisso político em Portugal (1965-1976). Os católicos da Revolução e o PCP.
José da Felicidade Alves nasceu em 11 de março de 1925, em Vale da Quinta na freguesia de Salir de Matos, nas Caldas da Rainha, e faleceu em Lisboa, a 17 de dezembro de 2008. Como sacerdote católico, foi professor no Seminário de Almada e no Seminário dos Olivais.
Foi na paróquia de Santa Maria de Belém, para onde foi nomeado em 1956, em Lisboa, que no prosseguimento do Concílio Vaticano II passou a ser reconhecido como um incontornável impulsionador do aggiornamento eclesial. Passou a ser identificado como um «padre rebelde». Foi afastado, em 1968, da paróquia de Belém e, mais tarde, com o processo designado “caso de Belém”, o Cardeal Manuel Cerejeira decretou a suspensão de Felicidade Alves do ministério sacerdotal, em 1970.
Do seu acervo na Fundação Mário Soares constam, entre outros documentos, os Cadernos GEDOC, materiais do seu processo e prisão pela polícia política do Estado Novo, do seu julgamento, documentação da comunicação com a hierarquia católica e da sua produção literária, assim como estudos e algumas das suas publicações.
José da Felicidade Alves, entre outras áreas de intervenção pública, foi dinamizador do Grupo Cristão SEIVA, que publicava diversos dossiers monográficos e trabalhou, em cadernos editados, propostas de informação e debate. Dessa iniciativa destacam-se os Cadernos Fé e Política, onde também foram refletidas as questões relativas ao papel dos cristãos nos processos políticos e revolucionários, no que constitui uma base de enquadra mento da ação e reflexão sobre «os católicos da revolução».
Felicidade Alves é um dos “católicos da revolução”. Nas suas opções enquanto cristão e nas suas ruturas com a Igreja-instituição em Portugal, Felicidade Alves enveredou por uma trajetória que o coloca no epicentro de sectores do catolicismo que se identificavam com um ideário de revolução. Neste sentido, relevante e significativo é o facto de o Pe. José da Felicidade Alves, a partir de Paris, entre os anos de 1967-1968, numa das suas cartas lidas em missas dominicais aos paroquianos de Belém, ter dado conta dos seus estudos de teologia, das razões dos temas e conteúdos de estudo a que decidiu dar prioridade, dando destaque à Teologia da Revolução. Para além de explicar as etapas dos seus estudos da Teologia da Revolução, o Pe. Felicidade Alves justifica o «problema do recurso à Revolução como meio necessário [...] para destruir as estruturas de opressão» . E quando foram lançados os Cadernos GEDOC, que, segundo Joana Lopes, «nasceram por iniciativa do Pe. José da Felicidade Alves» , as suas orientações programáticas estavam imbuídas de uma ideia revolucionária e concebidos no quadro de um projeto revolucionário .
Os Cadernos GEDOC fizeram um tempo em que no cristianismo uma teologia política exigia uma teologia da revolução, num contexto histórico contemporâneo em que fé e revolução confluíam na vida de sectores do catolicismo, na voracidade de tanto que queriam atuar para transformar radicalmente a sociedade. Como projeto e na sua orientação programática os Cadernos GEDOC inseriam-se numa linha autodesignada como sendo das opções radicais: «Colocamo-nos assim na zona de convergência da política e da fé, naquele ponto em que o projeto revolucionário (que aponta para a transformação radical duma sociedade incapaz de satisfazer as verdadeiras aspirações dos homens) se encontra com o Evangelho, boa nova da libertação do homem» .
Os Cadernos GEDOC corresponderam a um projeto de sectores do catolicismo que se definiam como «membros atuantes duma “Igreja crítica”». Sem a pretensão de criar uma «nova Igreja» ou de assumir «uma contra Igreja», reclamavam aqueles católicos como imperativo de consciência o dever de «desempenhar uma função crítica na Igreja» .
O primeiro de os Cadernos GEDOC foi lançado em fevereiro de 1969. Quando foram lançados aqueles cadernos tiveram imediatas reações da hierarquia da Igreja Católica, designadamente, da parte do Cardeal Cerejeira, que naquela sequência divulgou uma comunicação ao clero de Lisboa . À publicação do Caderno nº10 a PIDE/DGS teve uma intervenção repressiva. Os cadernos foram proibidos pelo Estado Novo e tornaram-se clandestinos. Entre abril e maio de 1970 foi preso o Pe. José da Felicidade Alves, juntamente com Nuno Teotónio Pereira e Manuel Mourão. Todas as pessoas que foram identificadas como fazendo parte dos «aderentes do GEDOC» foram interrogadas pela polícia política.
Felicidade Alves ter-se-á tornado militante do PCP - Partido Comunista Português ainda antes da Revolução de Abril, embora tal filiação só tenha formalização oficial e chegado ao conhecimento público mais tarde, depois da revolução de 25 de Abril de 1974.
Entretanto, com o Pe. José da Felicidade Alves já o PCP teria iniciado processos de aproximação política ao longo dos anos de 1960. Em 1967, uma carta do Pe. Felicidade dirigida a Carlos Antunes ou «Jaques», então dirigente do PCP em Paris (muito antes da sua rutura com o PCP), confirma uma ligação bem anterior e é expressiva da grande confiança, pois, pedia uma recomendação quanto ao que fazer, quanto à ação portadora de maior eficácia para contribuir para a «Revolução que se impõe, – na Nação e no interior da Igreja» .
Outra referência documenta um novo elo de Felicidade Alves com o PCP, como o confirma a informação feita por Silas Cerqueira ou «Maciel», a partir de Paris, em 27 de julho de 1968, num pequeno relatório que redigiu para a direção do PCP dando conta do cumprimento de uma sua tarefa: a ligação do PCP a José da Felicidade Alves. A partir de um encontro realizado a 24 de junho de 1968, escreve «Maciel» que o Pe. Felicidade Alves «está disposto a ter contactos com o P. em Portugal e levou uma credencial para isso» .
Em Paris, em 1968, terá acontecido um primeiro encontro de Felicidade Alves com Álvaro Cunhal .
A ligação de Felicidade Alves com o PCP ter-se-á processado num contexto de obrigatória clandestinidade. Iniciou-se, num primeiro momento, através de um discreto processo de diálogo, a partir do interesse pelo marxismo e com o estudo do materialismo histórico, como consta dos apontamentos de Felicidade Alves naquela época. Uma outra etapa da aproximação ao PCP passou por uma componente de trabalho com envolvimento participativo no movimento da paz, em articulação com o Conselho Mundial da Paz, naquela que constituiu uma das vertentes da promoção das «iniciativas unitárias.
As chamadas «iniciativas unitárias» compreendiam processos de intervenção pública na sociedade portuguesa, formas de organização legal ou semilegal e movimentos sociais que durante o fascismo português abriam espaço a que o PCP conseguisse suprir problemas decorrentes da sua organização clandestina e assim efetivar modalidades de participação política. Daí a importância dos esforços desenvolvidos para a estruturação dos também designados «processos unitários» em movimentos e organizações sociais, políticas e culturais que pretendiam influenciar ou determinar a composição ou o sentido da orientação política ao longo da ditadura de Salazar e Caetano.
José da Felicidade Alves participou em diferentes iniciativas do movimento internacional da paz, organização que agregava pessoas de heterogéneos quadrantes culturais e políticos, assim como de plurais filiações confecionais, embora fosse atribuída àquela organização uma articulada associação ao movimento comunista internacional . O Pe. Felicidade Alves participou em vários encontros do Conselho Mundial da Paz.
Da militância política é fundamental destacar a participação de Felicidade Alves na CDE – Comissão Democrática Eleitoral, tendo integrado a comissão política do círculo de Lisboa, com intervenção ativa na candidatura às eleições de dezembro de 1968.
Entre os membros fundadores da CNSPP - Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos encontra-se o Pe. Felicidade Alves, naquele que foi um dos decisivos movimentos sociais na transformação da sociedade portuguesa, de defesa dos direitos humanos e da luta pela liberdade em Portugal.
Sobre Felicidade Alves e para um aprofundamento dos conhecimentos acerca da militância católica no oposicionismo à ditadura de Salazar e Caetano, como para a compreensão da emergência dos católicos da revolução em Portugal, importa ter acesso à recente obra da autoria de Ana R. Gomes . Aquela leitura contribuirá, de forma substancial, para a interpretação de uma história de compromisso político e de militância que se tornou “da revolução” e do PCP em consequência do seu percurso no catolicismo.
5/07/2024
A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.
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1. CARDOSO, Abílio Tavares; RIBEIRO, João Salvado, org. – Testemunho aberto. O caso do Padre Felicidade. Lisboa: Multinova, 1999, p. 40.
2. 122 LOPES, Joana – Entre as brumas da memória. Os católicos portugueses e a ditadura. Lisboa: Ambar, 2007, p. 137.
3. Cf. GEDOC - II Encontro de aderentes. Para um Programa GEDOC, 24 de maio de 1969.
4. GEDOC - II Encontro de aderentes. Para um Programa GEDOC. 24 de maio de 1969.
Ibidem.
5. Cf. CEREJEIRA, Manuel Gonçalves – Comunicação ao Clero sobre o Caderno GEDOC. In Obras Pastorais (1928-1970). Lisboa: União Gráfica, 1970, vol. 7, p. 277-238.
Fundação Mário Soares – Carta de José da Felicidade Alves a Carlos Antunes. 23 de julho de 1967. Fundo: Isabel do Carmo/Carlos Antunes. Pasta: 09621.004.001.
6. Cf. Fundação Mário Soares - Breve relatório de um encontro com o Pe. F.A. Fundo: Isabel do Carmo/Carlos Antunes. Pasta: 09621. 004. 014.
7. ARAÚJO, António – A oposição católica no Marcelismo: o Caso da Capela do Rato. Lisboa: Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa [tese de doutoramento] Vol. V, p. 1639.
8. Cf. Fundação Mário Soares - Correspondência de José da Felicidade Alves. Carta de Silas Cerqueira, de 5 de maio de 1972. Fundo: DFL – Documentos Felicidade Alves. Pasta: 07517. 067. 001.
9. Cf. GOMES, Ana R. – Padre Felicidade: O oposicionista praticante. Lisboa: Tinta-da-china, 2024