"Os católicos da Revolução e o PCP" - Micro-biografia de Emídio Martins
Inserido num ciclo dedicado às comemorações dos 50º Aniversário do 25 de Abril, o Terra da Fraternidade divulga micro- biografias de algumas dos católicos com um papel de destaque no combate ao regime fascista e conquista da democracia.
Todas as micro-biografias são extraídas da tese de Doutoramento de Edgar Silva: "Vendaval de utopias. Do catolicismo social ao compromisso político em Portugal (1965-1976). Os católicos da Revolução e o PCP.
Emídio Martins - nasceu em Torres Novas em 1939. Desde muito jovem ingressou na JOC e, mais tarde, na LOC, onde viria a ser Coordenador Nacional. Exerceu funções de diretor do jornal Voz do Trabalho. Integrou a direção da Pastoral Operária e a revista Testemunho. Foi um dos dinamizadores do CCO – Centro de Cultura Operária, pertenceu à BASE e participou na fundação da BASE-F.U.T. Foi dirigente na União dos Sindicatos de Lisboa e dirigente da CGTP-IN, onde fez parte de organismos executivos.
Emídio Martins simboliza e integra uma vasta rede de ligações nacionais e internacionais que configuraram o chamado “catolicismo social”. Este foi um processo que emergiu, de forma gradual, de diferentes experiências de militância social que se foram apurando, de sobremaneira, ao longo dos anos de 1950 e de 1960.
A noção de “catolicismo social” abarca um moroso processo de vontade de renovação do catolicismo, que envolveu sectores da Igreja Católica em diversos países, inserindo-se num compromisso que se desenhou bem antes do Concílio Vaticano II (1962-1965), visando uma reconfiguração da identidade católica, num exercício de militância que se deslocou do religioso para o campo da intervenção sociopolítica.
O “catolicismo social” radicava o seu projeto numa visão eminentemente social do catolicismo, em contraponto às perspetivas que visavam reduzir o lugar da religião à vida privada dos indivíduos.
Enquanto dirigente da Ação Católica Portuguesa, Emídio Martins está associado a este processo de afirmação do “catolicismo social”, foi parte ativa no protagonizar conjunto de uma viragem profunda naqueles movimentos sociais, no que implicaram de alterações no pensamento e na ação de importantes sectores do laicado da Igreja Católica em Portugal.
Emídio Martins, um dos históricos dirigentes do movimento operário católico, sublinha o vasto alcance desse pensamento novo, que denomina de “revolução cultural”, com variadíssimas repercussões na Igreja e na sociedade. «Para esta evolução terão contribuído, sem dúvida, os contactos com organismos congéneres de outros países europeus e com grandes pensadores católicos do tempo. Estes contatos tornaram-se mais relevantes a partir de 1945, fim da Segunda Guerra Mundial.» 1
Pela participação de operários católicos em encontros internacionais, com a aproximação às experiências interventivas de outros movimentos, o contacto com as redes de relacionamento e com a matriz desenvolvimentista do pensamento católico de Louis-Joseph Lebret, o influxo da reflexão, entre outros pensadores católicos, de J. Maritin, E. Mounier e de G. Marcel, e pela interação das sensibilidades políticas, sociais e culturais que se identificavam com a necessidade de democratização do País e defendiam a renovação cultural e económica, tais ideias, à medida em que se faziam sentir no seio do catolicismo, promoviam uma alteração de fundo quanto à perspetivação das formas de participar e de intervir dos católicos na sociedade.
As interações geradas entre militantes nas deslocações a outros países, as perspetivas criadas pela participação em eventos com ativistas e movimentos católicos no estrangeiro e a forte conexão com dinâmicas internacionais, o contato e as influências referenciais predominantemente vindas de França, na sequência duma receção dos desenvolvimentos doutrinais e políticos do catolicismo francês, implicaram reorientações de fundo no catolicismo social português. Desde logo, dando lugar a uma maior atenção-ligação aos problemas sociais, com novas ferramentas analíticas para a interpretação das “coisas do mundo” na sociedade portuguesa. E, concomitantemente, adotando o método de “Revisão de Vida” em processos onde a justiça social se interpõe como critério norteador e conferidor de absoluto sentido à razão de ser do agir social da militância católica.
É neste contexto que em Portugal a Ação Católica acolhe a nova metodologia da “Revisão de Vida” e faz a aprendizagem do “compromisso temporal”, como referiu o dirigente do movimento operário católico, Emídio Martins:
«A Revisão de Vida Operária [RVO] aparece em Portugal após o Congresso Mundial da JOC, realizado em Roma, em 1957, e foi praticada em primeiro lugar pela JOC Feminina. A RVO analisa a vida operária à luz do Evangelho de Jesus Cristo. A LOC, no plano nacional, a partir de 1967, decide imprimir uma dinâmica ao método de formação Ver, Julgar e Agir adotando a metodologia e a mística da RVO nas reuniões das equipas de base. Primeiro, com o apoio de um Plano Básico com temas de aprofundamento: egoísmo, abuso do poder, dignidade da pessoa, classe operária, sociedade, Igreja, entre muitos outros; depois, com a realização de atividades e outros meios»665 . 2
A “Revisão de Vida”, para além de ter correspondido a uma outra opção ao nível dos métodos de formação dos militantes, significou o perfilhar duma espiritualidade “encarnada na vida e na história” e a adoção dum novo modelo de diálogo e de contextualização da práxis evangelizante. Assim, a LOC e a JOC avançaram com uma pedagogia ativa, baseada nos processos do “ver, julgar e agir”, e com um método eminentemente participativo, que implicava outro conceito de militante e de militância, priorizando uma mais apurada formação de consciência crítica acerca da realidade, de maior inserção no mundo operário e de exigência de engajamento. E de tudo quanto a nova compreensão teologal das exigências da espiritualidade encarnada, mundana, irá fundamentadamente suscitar na Ação Católica e na sociedade portuguesa, assim como a viragem que a nova gramática do dever de “compromisso temporal” irá potenciar no seio do catolicismo social ao longo dos anos da década de 1960, poderemos dizer que daquela mística do agir e da teologia da ação resultarão níveis singulares de conscientização de sectores do catolicismo e de vontades de envolvimento transformador da sociedade portuguesa.
Será a partir das dinâmicas do chamado “catolicismo social”, enquanto ampla corrente de setores católicos comprometidos em novas respostas para os problemas sociais, que surgiram muitos dos “católicos da revolução”.
Emídio Martins percorreu essa trajetória do “catolicismo social”. Através do crescente entendimento de que os católicos deveriam tomar partido pela humanidade dos oprimidos, pela justiça social, pela paz, pela democracia, fez parte de um movimento social, ao qual deu relevantes contributos, que deu corpo a uma nova forma do “ser cristão”.
27/09/2024
A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.
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1. Entrevista com Emídio Martins, gravada em 13 de fevereiro de 2020.
2. Entrevista com Emídio Martins, realizada em 13 de fevereiro de 2020.