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Pressa no ar e vontade de transformar

“Enquanto na Ucrânia e noutros lugares do mundo há combates, e enquanto em certos salões escondidos se planeia a guerra — isto é terrível, planear a guerra! — a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) mostrou a todos que outro mundo é possível: um mundo de irmãos e irmãs, onde as bandeiras de todos os povos flutuam juntas, lado a lado, sem ódio, sem medo, sem fechamentos, sem armas!

Pressa no ar e vontade de transformar

Sérgio Dias Branco é professor da Universidade de Coimbra, dirigente da CGTP-IN, e leigo da Ordem Dominicana da Igreja Católica.

A mensagem dos jovens foi clara: será ouvida pelos ‘grandes da terra’? Pergunto-me, ouvirão este entusiasmo juvenil que deseja paz? É uma parábola para o nosso tempo, e ainda hoje Jesus diz: ‘Quem tem ouvidos, ouça! Quem tem olhos, veja!’” (1)

As palavras de ante-ontem do Papa Francisco sobre a JMJ resumem o essencial do potencial transformador deste evento. A JMJ ensina a fraternidade, juntando jovens e não só de todos os continentes e de múltiplas culturas em igualdade e em união, esconjurando as sombras do racismo e da xenofobia. Também por isso ensina que a paz entre os povos é uma necessidade, mas é também uma possibilidade real. A visita de Francisco marcou a maior parte dos dias da JMJ de forma intensa, lançando temas e tecendo comentários — temas e comentários muitas vezes ignorados na comunicação social e por responsáveis políticos que assim evitaram expor as suas contradições ou o seu incómodo.

No memorável encontro com as autoridades, a sociedade civil, e o corpo diplomático, no Centro Cultural de Bélém, logo após a sua chegada a 2 de Agosto, Francisco pôs logo o dedo na ferida. Colocando o projecto da União Europeia ao espelho para o examinar criticamente, disse: “Na verdade, o mundo tem necessidade da Europa, da Europa verdadeira: precisa do seu papel de construtora de pontes e de pacificadora no Leste europeu, no Mediterrâneo, na África e no Médio Oriente. Assim poderá a Europa trazer, para o cenário internacional, a sua originalidade específica; vimo-la delineada no século passado quando, do crisol dos conflitos mundiais, fez saltar a centelha da reconciliação, tornando verdadeiro o sonho de se construir o amanhã juntamente com o inimigo de ontem, o sonho de abrir percursos de diálogo, percursos de inclusão, desenvolvendo uma diplomacia da paz que extinga os conflitos e acalme as tensões, capaz de captar o mais débil sinal de distensão e de o ler por entre as linhas mais distorcidas da realidade.” Mais à frente, acrescentou: “Com a sua imensa vastidão de água, o oceano recorda as origens da vida. No mundo evoluído de hoje, paradoxalmente, tornou-se prioritário defender a vida humana, posta em risco por derivas utilitaristas que a usam e descartam: a cultura do descarte da vida. Penso em tantas crianças não-nascidas e idosos abandonados a si mesmos, na dificuldade de acolher, proteger, promover e integrar quem vem de longe e bate às nossas portas, no desamparo em que são deixadas muitas famílias com dificuldade para trazer ao mundo e fazer crescer os filhos. Também aqui apetece perguntar: Para onde navegais, Europa e Ocidente, com o descarte dos idosos, os muros de arame farpado, as mortandades no mar e os berços vazios? Para onde navegais?” (2)

O mesmo discurso reforçou a necessidade de uma política ambiental que vise a preservação do equilíbrio da natureza e dos seus sistemas ecológicos e recursos naturais: “Portugal partilha com a Europa muitos esforços exemplares na defesa da criação. Mas o problema global continua extremamente grave: os oceanos aquecem e, das suas profundezas, sobe à superfície a torpeza com que poluímos a nossa casa comum. Estamos a transformar as grandes reservas de vida em lixeiras de plástico. O oceano lembra-nos que a existência humana é chamada a viver de harmonia com um ambiente maior do que nós; este deve ser guardado; deve ser guardado com cuidado, tendo em conta as gerações mais novas. Como podemos dizer que acreditamos nos jovens, se não lhes dermos um espaço sadio para construir o seu futuro?” (3)
Logo nesse momento, que não era directamente dirigido aos jovens, Francisco deixou o fundamental da sua mensagem: “Jovens provenientes de todo o mundo que cultivam anseios de unidade, paz e fraternidade, jovens que sonham desafiam-nos a realizar os seus sonhos bons. Não andam pelas ruas a gritar sua raiva, mas a partilhar a esperança do Evangelho, a esperança da vida. E se, em muitos lugares, se respira hoje um clima de protesto e insatisfação, terreno fértil para populismos e conspirações, a Jornada Mundial da Juventude é ocasião para construir juntos. Reaviva o desejo de criar coisas novas, fazer-se ao largo e navegar juntos rumo ao futuro.” (4) A interpelação sobre a salvaguarda de um futuro digno para a juventude de hoje tornou-se depois ainda mais concreta, do aumento do custo de vida à base do modelo económico: “E o futuro são os jovens. Mas muitos fatores os desanimam, como a falta de trabalho, os ritmos frenéticos em que se veem imersos, o aumento do custo de vida, a dificuldade de encontrar uma casa e, ainda mais preocupante, o medo de constituir família e trazer filhos ao mundo. Na Europa e em geral no Ocidente, assiste-se a uma fase descendente na curva demográfica: o progresso parece ser uma questão que diz respeito ao desenvolvimento técnico e ao conforto dos indivíduos, enquanto o futuro pede para se contrariar a queda da natalidade e o declínio da vontade de viver. A boa política pode fazer muito neste sentido; pode gerar esperança. Com efeito, não é chamada a conservar o poder, mas a dar às pessoas a possibilidade de esperar. É chamada, hoje mais do que nunca, a corrigir os desequilíbrios económicos dum mercado que produz riquezas mas não as distribui, empobrecendo de recursos e de certezas os ânimos.” (5)

Na Missa da manhã do último dia da sua visita, dedicada à JMJ e sob o signo da transfiguração, Francisco insistiu num conjunto de mensagens para que a juventude enfrente de modo combativo os desafios que lhe estão a ser colocados: “A vós, jovens, que vivestes esta alegria [...]; a vós, que cultivais sonhos grandes mas frequentemente ofuscados pelo temor de que não se realizem; a vós, que às vezes pensais que não ides conseguir (por vezes assalta-nos um pouco de pessimismo); a vós, jovens, tentados a desanimar neste tempo, a julgar-vos talvez inadequados ou a esconder a angústia mascarando-a com um sorriso; a vós, jovens, que quereis mudar o mundo (é um bem que queirais mudar o mundo!) e que quereis lutar pela justiça e a paz; a vós, jovens, que investis na vida esforço e imaginação, ficando porém com a sensação de que não bastam; a vós, jovens, de quem a Igreja e o mundo têm necessidade como a terra tem de chuva; a vós, jovens, que sois o presente e o futuro… Sim, precisamente a vós, jovens, é que Jesus diz hoje: ‘Não tenhais medo’, ‘não tenhais medo’! Num breve momento de silêncio, cada um repita para si mesmo, no próprio coração, estas palavras: ‘Não tenhais medo’.” (6)

Entre o primeiro discurso público e a homilia do último, Francisco combateu a indiferença em relação aos problemas do mundo, em linha como o que tem feito face aos naufrágios de migrantes. Enquadram-se neste combate o encontro inter-religioso na Nunciatura Apostólica a 4 de Agosto de reafirmação da fraternidade universal. Mas também a insistência na ideia de que a Igreja Católica deve estar aberta a toda a gente, no mesmo dia em que uma Missa presidida por um padre dominicano e promovida pelo Centro Arco-Íris, um espaço seguro para católicos LGBT na JMJ, foi perturbada por um grupo que em nome das suas convicções nem sequer respeitou a sacralidade da celebração. (7)

Há múltiplos desafios que são decisivos para o futuro da Igreja Católica, da valorização real das mulheres ao combate eficaz ao horror da pedofilia e de outros abusos e a reparação que exigem. O futuro da Igreja depende, sobretudo, de colocar a ênfase em valores capazes de transformar um mundo ferido pela exclusão, pela guerra, e pela injustiça, tendo Jesus como companhia permanente para a vida, em sintonia com o Papa Francisco. Nesse sentido, é interessante que um dos conjuntos de imagens de divulgação da JMJ tenha sido em torno da ideia de união com a expressão “Estou contigo”. “Estou contigo pela inclusão”. “Estou contigo pela paz”. “Estou contigo pela justiça”. O hino da JMJ falava da “pressa no ar” e esta urgência, seguindo as pisadas de Francisco, rima com a vontade de transformar. O futuro da Igreja depende em grande parte desta visão de construção do mundo, que vem diretamente do evangelho como fermento e acção transformadora.

11/08/2023

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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(1) Papa Francisco, “Audiência Geral”, 9 Ago. 2023, https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2023/documents/20230809-udienza-generale.html .
(2) Papa Francisco, “Encontro com as autoridades, com a sociedade civil e com o corpo diplomático”, 2 ago. 2023, https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2023/august/documents/20230802-portogallo-autorita.html .
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) Ibid.
(6) Papa Francisco, “Homilia da Santa Missa para a Jornada Mundial da Juventude”, 6 Ago. 2023, https://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2023/documents/20230806-portogallo-omelia-gmg.html .
(7) Rui Cid com Gonçalo Teles, “Coisas um bocado antigas." O relato do padre que presidiu à missa LGBT interrompida por ‘ultraconservadores’”, TSF, 4 Ago. 2023, https://www.tsf.pt/portugal/sociedade/coisas-um-bocado-antigas-o-relato-do-padre-que-presidiu-a-missa-lgbt-interrompida-por-ultraconservadores-16806859.html .

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