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Paz, essa palavra subversiva

O que mais me impressionou no primeiro dia da Jornada Mundial da Juventude não foi o espectáculo do encontro de jovens, de povos, de culturas, de mais de cem países, e a alegria e sã convivência que transpareciam. Línguas, etnias, modos de viver diferentes e de lugares tão distantes, entrelaçam-se, e do seu encontro irradia, entre abraços e sorrisos abertos, o direito a ser feliz e a esperança num mundo melhor.

Paz, essa palavra subversiva

Foto: Jornal Renovação

Jorge Sarabando é activista cultural com obras publicada sobre história contemporânea, antigo autarca, e dirigente do PCP, com o Curso de Defesa Nacional do IDN.

O que mais me impressionou foi o cuidado, na cobertura mediática, de desvalorizar, nas palavras do Papa, os apelos à paz e a uma Europa aberta ao mundo, na sua intervenção no Centro Cultural de Belém. Questionou a Europa, ali representada pelo Governo português e corpo diplomático: “Para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra da Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo? Que rota segues, Ocidente?” Esta seria a notícia do dia, porque houve uma pergunta directa, uma interpelação, sobre uma guerra que abala a Europa e o mundo, na presença de altos responsáveis políticos.

Mas os critérios editoriais dominantes eram outros e convergiram num ponto: marcar o primeiro dia da visita, e se possível os seguintes, com o tema dos abusos sexuais, esse drama, enovelado em condutas criminosas, que o Papa Francisco tem enfrentado com grande coragem, lucidez e clarividência. Cuidaram de afastar a atenção e a reflexão dos jovens presentes, da multidão de peregrinos e do vasto auditório de consumidores mediáticos, os temas mais substantivos da mensagem do Papa Francisco, presentes ao longo do seu pontificado e em todas as suas intervenções.
Reli, por estes dias, três livros, as encíclicas Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum, e Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e a amizade social, e O Pastor de Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin, todos das Edições Paulinas. (1)

Não encontrei, além do suporte doutrinário dos Evangelhos e de palavras dos seus antecessores, um rasto dogmático determinante. O fio condutor é o de quem interpela o leitor, a partir do exame da história, da observação da natureza e do mundo social, assim como do ser humano concreto, onde os que são crentes poderão encontrar o rosto de Cristo. Mas em todos busca a compreensão de um caminho a seguir. O que bem condiz com as suas palavras, nos Jerónimos: “uma Igreja que não dialoga, envelhece”.

Antes encontrei justas palavras que merecem atenta reflexão.

Tendo visitado a ilha italiana de Lampedusa, onde aportam imigrantes que sobrevivem à travessia do Mediterrâneo, para lhes estender a mão misericordiosa, defendeu o “direito a não emigrar” (FT, 28).

Lembrando a opção do bom samaritano (FT, 44), fala dos excluídos, dos “descartáveis”, os que “sofrem na margem da estrada”, e condena a indiferença dos que passam.

Ao referir-se à pobreza, critica “a obsessão por reduzir os custos laborais” (FT, 17), alerta, a propósito da crise de 2008, em que a “salvação dos bancos foi paga pela população”, que “o domínio absoluto da finança não tem futuro”, e defende “uma nova regulamentação da actividade financeira especulativa e da riqueza virtual” (LS, 126).

Ao valorizar o trabalho humano, afirma que “ajudar os pobres com dinheiro deve ser sempre um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objectivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho” (LS,p.88).

Ao falar das guerras, condena “o desenvolvimento de novas armas ofensivas, capazes de alterar os equilíbrios naturais”. Diz ser necessário “prevenir e resolver as causas” mas, sublinha, “o poder, ligado com a finança, é o que maior resistência põe a tal esforço” (LS, 42).

A propósito da pesquisa científica, afirma que “a técnica separada da ética dificilmente será capaz de autolimitar o seu poder” (LS, 94).

Justas palavras, escritas pelo Papa Francisco, mas incómodas para os poderes económicos dominantes e os políticos seus serventuários. Não podendo apagá-las, procuram que sejam omitidas, diminuídas, esquecidas.

Vivemos num tempo inquietante. Prosseguem as guerras sem fim à vista e uma pequena mas poderosa minoria enriquece com a produção de armamentos e serviços afins. No nosso País, pequeno e periférico como se ouve dizer, os gestores dos cinco maiores bancos declaram lucros de dois milhões de euros por dia, enquanto se multiplicam os jovens sem acesso a habitação pela alta das taxas de juro, aumenta a carência de bens elementares e a pobreza, devida à precariedade e a baixos salários e pensões, instala-se na vida de mais pessoas.

O que ajuda a entender, na comunicação social dominante, que a justiça social seja uma expressão a evitar e a paz uma palavra subversiva.

6/08/2023

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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(1) Papa Francisco, Louvado Sejas: Carta Encíclica Laudato si’ – sobre o cuidado da casa comum (Prior Velho: Paulinas, 2015). Papa Francisco, Fratelli Tutti: Carta Encíclica – sobre a fraternidade e a amizade social (Prior Velho: Paulinas, 2020). Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin, O Pastor: Desafios, razões e reflexões de Francisco sobre o seu pontificado (Prior Velho: Paulinas, 2023).

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