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A pobreza como lugar

O programa tão veemente da Ação Católica — ver, julgar e agir — outrora tão dinâmica e hoje tão pouco expressiva, interpela-nos em relação a quem e ao que somos. Creio que boa parte de nós, nos questionemos de vez em quando sobre o sentido de andarmos por cá, sujeitos não somente a uma vontade divina — certa para aqueles que cremos, mas antes sujeitos à vontade de outros iguais em direitos e deveres como nós, que nos condicionam e impedem que nos realizemos completamente. É por isso que uma parte do mundo parece estar saturado com a outra parte mundo.

A pobreza como lugar

Duarte Nuno Morgado é formado em Teologia, membro de diversas associações de cariz cultural e social e atualmente Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Loures.

O problema é que o fosso aumenta e as percentagens são cada vez mais desiguais para ambos os lados. Os poucos que parecem decidir como os muitos poderão viver, quer queiram, quer não queiram. Basta reconhecer o impacto brutal diário dos mais de 30 conflitos armados em ato contínuo um pouco por todo o globo terrestre, ou das vagas migratórias que têm transformado as paisagens humanas em cenário de guerra, extensos corredores de refugiados, quer por mais, quer por terra, uns pela guerra, outros pela fome, ou pela perseguição religiosa, pela perseguição xenofóbica, ou então por causa da extrema pobreza em que vivem.

São milhões aqueles que mundo fora se veem privados de dignidade. É disto que se trata — da dignidade humana. Quem quer saber de tratados, de acordos de boas vontades, de decisões e considerações políticas infrutíferas, quando o mundo grita diariamente, não às portas das sociedades mais desenvolvidas, mas bem dentro delas! Em Portugal cabe já o mundo todo, porque os migrantes de que se fala, acreditam ter neste território uma oportunidade, mas aquilo que vamos percebendo é que se trata cada vez mais de uma terra de pobreza, onde esta se materializa como espaço, também como lugar.

O pobre tornou-se lugar: de desprezo, de esquecimento, de descrédito, de abandono. Talvez por isso mesmo o Papa Francisco tenha afirmado que o pobre é antes um lugar teológico, onde Deus está tão presente quanto nos lugares mais belos da Criação. Porque na sua raiz, o pobre exige a nossa atenção, o nosso empenho, a nossa determinação. Ser pobre é viver cada dia no fim da linha, cujo objetivo não está na felicidade e na vivência, mas na sobrevivência resiliente. O pobre tem de ser presença divina, digna de toda a dedicação. Por isso mesmo, na sua mensagem anual para o Dia Mundial do Pobres (19 de novembro), o Papa Francisco inspirou-se na frase bíblica do Livro de Tobias: “Nunca afastes de algum pobre o teu olhar” (4,7). E comentando estas palavras alerta-nos: “Empenhamo-nos todos os dias no acolhimento dos pobres, mas não basta; a pobreza permeia as nossas cidades como um rio que engrossa sempre mais até extravasar; e parece submergir-nos, pois o grito dos irmãos e irmãs que pedem ajuda, apoio e solidariedade ergue-se cada vez mais forte.” (1)

Afinal, aquilo a que assistimos todos os dias, mundo dentro e mundo fora, já se tornou tão banal que pouco altera as decisões de quem tem a autoridade e os mecanismos para mudar este curso da nossa história. Não podemos desviar o olhar e muito menos podemos ficar mudos nem inertes, restando-nos lutar pelos meios de que dispomos, para que a todos chegue a justiça e a verdade. Essa é a razão da nossa missão: lutar até que acabe a pobreza. Pelo bem comum.

Num momento de proximidade universal, por meio da unidade que a Jornada Mundial da Juventude permitirá desenvolver entre nós, este desejo de bem comum diz da missão que nos deve definir. O encontro de jovens de todo o mundo em Portugal será uma oportunidade para o encontro de povos e culturas distintos, cujo desejo comum será fazer deste mundo, um mundo melhor. De que modo? Na adesão preparatória foi pedido a voluntários e peregrinos que aprofundassem as suas motivações para estarem disponíveis a acolher um convite de mudança, de transformação. Estou convicto de que serão vários os milhares que aí encontrarão o seu sentido maior de vida.

24/07/2023

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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(1) Francisco, “Mensagem para o VII Dia Mundial dos Pobres”, 13 jul. 2023, https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/poveri/documents/20230613-messaggio-vii-giornatamondiale-poveri-2023.html

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