Quando um cartaz nos pergunta quem queremos ser
Surgem nas ruas cartazes com frases como “Isto não é o Bangladesh”. Não são apenas ruídos de campanha, são sinais de uma tentação antiga, dividir o mundo entre os que pertencem e os que são estranhos.

Alexandre Nuno Teixeira é Gestor de Programas no Setor Social (Migrações) e Dirigente Associativo Voluntário (Movimento Associativo Popular e IPSS).
Ao contrapor “Portugal” a um outro país, a política torna-se um exercício de simplificação agressiva, onde pessoas concretas passam a rótulos, e diferenças reais que merecem debate sério são convertidas em caricaturas mobilizadoras do medo. A pergunta que nos fica, a crentes e não crentes, é simples e exigente, que tipo de comunidade queremos construir?
À luz do humanismo cristão, a resposta começa sempre na dignidade inviolável de cada pessoa. O Catecismo recorda que toda a discriminação baseada em raça, origem, língua, religião ou condição social deve ser vencida e erradicada por ser contrária ao desígnio de Deus. O Concílio Vaticano II, na Nostra aetate e na Gaudium et spes, afirma que a pessoa humana é princípio, sujeito e fim de toda a vida social e que o bem comum tem feição universal, abrangendo a família humana inteira. Dizer isto não é lançar frases piedosas para a praça pública, é estabelecer critérios de discernimento. À luz desses critérios, qualquer comunicação política que humilhe povos, degrade estrangeiros ou alimente xenofobia falha o teste ético e corrói a própria convivência democrática.
O magistério contemporâneo insiste na mesma direção. João XXIII, em Pacem in terris, assenta a paz na verdade, na justiça, na caridade e na liberdade, pilares incompatíveis com a lógica do bode expiatório. Bento XVI, em Caritas in veritate, lembra que todo o migrante é uma pessoa humana com direitos inalienáveis, a respeitar sempre e por todos. O Papa Francisco, em Fratelli tutti, chama a uma amizade social que recusa a transformação das diferenças em trincheiras e propõe quatro verbos que se tornaram bússola política e pastoral, acolher, proteger, promover e integrar. Quando um cartaz proclama “Isto não é o Bangladesh”, não está a discutir políticas públicas, está a escolher um vocabulário que inviabiliza esses quatro verbos antes de começarmos a conversar.
Também a tradição filosófica católica oferece uma chave robusta para este tempo. O personalismo de Jacques Maritain e Emmanuel Mounier, ecoado por Romano Guardini, ensina que a sociedade existe para a pessoa e não o contrário. Estados, fronteiras, economias e partidos são meios, a pessoa, com rosto, história e destino, é o fim. Sempre que absolutizamos identidades coletivas e usamos indivíduos como instrumento de mobilização, por medo ou por cálculo eleitoral, pervertemos a ordem justa das coisas. A linguagem é o primeiro lugar onde isto aparece, quando trocamos histórias por estereótipos, vizinhos por ameaças, diferenças por insultos velados.
Isto não significa negar problemas concretos. Pelo contrário, é precisamente por respeitarmos a dignidade de todos que devemos discutir, com seriedade, políticas de habitação, salários dignos, capacidade dos serviços públicos, regras claras de entrada e de integração. O ponto decisivo é o modo como falamos uns dos outros ao fazê-lo. A verdade sem caridade torna-se violência, a caridade sem verdade degrada-se em sentimentalismo. A gramática cristã exige ambas, rigor nos factos e humanidade na abordagem, e pede ainda uma orientação constante ao bem comum, não como soma de interesses particulares, mas como as condições efetivas que permitem a cada pessoa, local ou recém-chegada, florescer.
Aplicado ao caso, o veredito é simples. Mensagens do tipo “Isto não é o Bangladesh” desumanizam ao reduzir pessoas a etiquetas nacionais, ferem o bem comum porque erodem a confiança e empobrecem a conversa pública, são pastoralmente nocivas porque fecham portas ao encontro de que a integração precisa, e são politicamente estéreis porque trocam propostas por provocações. A alternativa não é a autocensura nem o silêncio constrangido, é falar melhor. É recusar o atalho do insulto e optar por palavras que abram espaço a soluções, com dados, com prudência e com respeito. É pensar a identidade não como muralha, mas como casa com fundamento e portas, capaz de acolher sem perder a forma. A identidade enraíza-se, não se blinda.
A escolha da linguagem tem consequências práticas. Uma cidade que diz “nós” contra “eles” torna-se gradualmente uma cidade de suspeitas, uma comunidade que diz “nós” com “os outros” começa a construir pertença. Pertença não é unanimismo, é a convicção de que partilhamos um destino e podemos, com regras claras e responsabilidade mútua, trabalhar lado a lado. Quando a Igreja pede que passemos dos slogans à proximidade, não pede ingenuidade, pede a coragem discreta de conhecer antes de julgar, de perguntar antes de acusar, de transformar a distância em encontro. É nesse chão que brotam políticas sensatas, cursos de língua que funcionam, mediação intercultural que evita conflitos, programas de acesso ao emprego, redes de vizinhança que acolhem e responsabilizam, participação cívica que dá voz a quem chega e a quem cá está.
Talvez devamos fazer um exame de consciência público. De que temos medo quando aprovamos cartazes que se definem por negação do outro? Que inseguranças pedem respostas sérias e não bodes expiatórios? Uma comunidade segura não é a que levanta mais muros, é a que fortalece laços, instituições e oportunidades, onde cada um sabe o que pode esperar do outro e do Estado. A linguagem da fraternidade, longe de ser um luxo moral, é infraestrutura invisível, sem ela, nenhuma reforma resiste, com ela, até problemas difíceis encontram caminho.
Entre um cartaz que exclui e uma palavra que acolhe, há um país inteiro a decidir quem quer ser. A tradição cristã oferece uma direção clara, da oposição entre “nós” e “eles” à construção do “todos”, onde a dignidade precede o rótulo e a política volta a ser serviço.
E isso começa no detalhe da nossa ação e em cada frase, escolher a palavra que reconhece, respeita e integra, a palavra que abre, finalmente, a porta da casa comum.
11/11/2025
A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.
