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A coragem de dizer “não vos conheço”

Nos últimos dias, a voz do presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas, ecoou para lá das paredes da Igreja e entrou no espaço público com uma clareza rara.

A coragem de dizer “não vos conheço”

Alexandre Nuno Teixeira é Gestor de Programas no Setor Social (Migrações) e Dirigente Associativo Voluntário (Movimento Associativo Popular e IPSS).

Ao comentar as novas leis sobre nacionalidade e estrangeiros, Ornelas foi taxativo: quem invoca a fé, mas promove xenofobia e discursos contra imigrantes, “não pode ser reconhecido como católico” (Expresso, 12.09.2025).

A imagem que escolheu não é inocente. Citando Jesus Cristo, recordou que quando este foi confrontado pelos que se consideravam guardiões da fé, respondeu: “Não vos conheço” (ZAP, 12.09.2025). Ornelas transpõe essa resposta para o presente: há hoje quem proclame uma identidade cristã, mas cuja prática — marcada pelo medo, pela exclusão e pela hostilidade ao estrangeiro — se distancia radicalmente do Evangelho.

Mais do que uma exortação espiritual, trata-se de uma intervenção política no melhor sentido do termo. O bispo denuncia uma “cultura de medo” que se traduz em propostas legislativas mais preocupadas em proibir do que em integrar. E alerta para os riscos dos “populismos manipuladores”, que fazem dos migrantes um bode expiatório conveniente em tempos de incerteza (Agência Ecclesia, 12.09.2025).

É importante sublinhar que este alerta não surge no vazio. A história de Portugal — como de outros países lusófonos — está profundamente marcada pela mobilidade humana, pelas migrações e pelas feridas abertas pelo colonialismo e pela escravatura. Ornelas recorda que não se pode apagar essa memória, sob pena de repetir erros: “os mais frágeis pagam o custo mais alto” quando o debate público é manipulado.
A posição do presidente da CEP é incómoda para muitos. Por um lado, desafia os que instrumentalizam a fé para legitimar discursos ou políticas de exclusão. Por outro, obriga a sociedade a confrontar-se com uma pergunta essencial: queremos um país fechado sobre si mesmo, alimentado por medos e preconceitos, ou uma comunidade que se reconhece no valor da hospitalidade e da dignidade humana?

Há quem considere que a Igreja deve ficar fora da política. Mas, se política é a construção da polis, da comunidade, nada é mais político do que defender os vulneráveis, os excluídos, os “estrangeiros” que batem à porta. Nesse sentido, o “puxão de orelhas” de Ornelas não é apenas dirigido ao Governo, mas a todos nós — cidadãos, eleitores, crentes ou não.

O debate sobre migrações em Portugal não pode ficar refém de slogans fáceis ou do populismo de ocasião. Precisa de ser um debate informado, ancorado em factos e guiado por princípios éticos sólidos. O que o presidente da CEP fez foi lembrar-nos que a fé — quando invocada — não é um biombo para esconder medo e exclusão, mas um apelo radical à justiça, ao acolhimento e à fraternidade.

E talvez seja esse o maior incómodo das suas palavras: ao dizer “não vos conheço”, Ornelas obriga-nos a perguntar quem somos, afinal, como sociedade.

23/09/2025

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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