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Paz

Em línguas diferentes, de acordo com a tradição cultural e a sua geografia, os acrónimos são importantes como meio de comunicação. As siglas tornam-se significantes e transportam consigo conteúdos relevantes para diversos contextos e de acordo com motivações várias.

Paz

Duarte Nuno Morgado é formado em Teologia, membro de diversas associações de cariz cultural e social e atualmente Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Loures.

Nas siglas interpretamos aquilo que estando diante de nós, sendo dizível, é muitas vezes invisível. Por essa razão torna-se relevante conhecer o poder da palavra, honrada, ou não, das palavras, muitas vezes ricas na sua semântica, mas que se não forem respeitadas, podem ser esvaziadas do conteúdo que supostamente deveriam trazer consigo.

Acontece com PAZ. A paz que nos aparece como palavra é cada vez mais dita como necessidade primeira, mas infelizmente é também cada vez mais distante da nossa realidade, do nosso tempo, tornando-se apenas um conceito ao invés de ser um modo de estar em civilização. Parece que em cada dia que passa, a paz deixa de ser uma motivação, um objetivo comum, para ser um devaneio utópico de alguns (ainda assim, de muitos), e por isso escasseia, talvez como os recursos naturais de que dispomos a cada dia que vivemos. Rareiam entre nós gestos de gentileza, de respeito mútuo, de silêncios bondosos, de cuidado, de atenção. Não quero ser um negativista, mas reconheço cada vez mais que a paz não passa de um mero acrónimo, agigantado, escrito em maiúsculas, como num grito, deixando de ser uma palavra poderosa, transformadora e garante de prosperidade, de segurança, de futuro, para ficar cada mais menorizado na sua concretização.

PAZ aparece antes como a junção de três siglas que nos revelam palavras mais difíceis de aceitar, mas que são agora o motor das grandes decisões: Poder; Ambição; Zero. O poder é o mais imediato de entender porque é ele que perpetua a sede do conflito, seja armado, político, ou ideológico, devastando a vida de todos e rompendo com a solidariedade e o altruísmo que tanto nos fazem falta, abdicando do bem gracioso que deveríamos procurar ser uns para com os outros. O poder é por isso o primeiro desta trina. A ambição, a segunda palavra nascida a partir do 'A' controla o coração e as decisões porque, quando desmedida e sem o freio equilibrado do bom senso, passa por cima de uns e de outros, e valha o que valer, o que interessa realmente é garantir a realização própria, mesmo quando isso signifique não respeitar ninguém. Por fim, em terceiro, o grandioso, mas nefasto, zero. É isso mesmo, um redondo vazio circular que nos prende na indiferença, na falta de tolerância e na incapacidade de ter compaixão na relação com o outro.

PAZ pode adquirir, naturalmente, outras leituras, se as quisermos viver entre nós, mas se abdicamos em coisas simples do quotidiano de sermos melhores do que somos, então nunca saberemos o que é a paz que tanto dizemos desejar. Faz o seguinte: sê presença de paz, ousa ser diferente respeitando para seres respeitado, escutando para que sejas escutado, compreendendo para que sejas compreendido, sendo compassivo quando quiseres que percebam o que sentes. Não queres, preferindo o contrário? Então prepara-te para nunca saberes o que é viver, porque só em paz se vive, e sem ela apenas se sobrevive. Mas isso tu e eu já sabemos, resta saber o que cada um de nós quer em cada dia: viver ou sobreviver.

7/08/2024

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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