JMJ Lisboa 2023: Do CCB em Lisboa saiu uma proposta para um mundo renovado (I)
O ano 2023 ficou marcado em Portugal pela realização da 37.ª Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa. Foram por isso dias de grande frenesim, envoltos pela presença de centenas de milhares de jovens vindos de todo o mundo, liderados por um homem com mais de 80 anos de idade, cuja vida não pode ser vista com os óculos isentos de emoção e de admiração.
Duarte Nuno Morgado é formado em Teologia, membro de diversas associações de cariz cultural e social e atualmente Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Loures.
Pessoa singularmente relevante no cenário histórico presente, Francisco é, para muitos de nós, aquele que Deus quis para guiar a sua Igreja. Não obstante de falarmos de uma dimensão profundamente simbólica, o papel dos Papas, tem sido, de modo muito relevante, desde o início do século XX, o de um pacificador e construtor de pontes. Afinal, pontífice tem na sua etimologia esse mesmo sentido, pois pontificar será construir uma ponte, relacionar, interligar, fazer comunicar. Não vivemos tempos em que poderíamos esperar ter um Papa com o seu exército a invadir territórios contrários, mas antes, ser aquilo para que foi eleito: unir, ligar. Foi essa a escolha de Jesus para Pedro: que pudesse assumir esse poder de abrir e fechar as portas intercomunicantes dos céus e da terra. E tudo isto se entende melhor quando escutamos uma voz que nos soa a profecia e que traz nela a dureza do deserto, onde o profeta pode gritar alto e em bom som, mas cuja voz dificilmente se ouve, se faz notar. Francisco quer ser, à imagem de João Baptista, essa voz que denuncia e anuncia.
Repudia o que está errado, o que se opõe aos valores em que crê, e faz questão de comunicar aquilo que o move, que dá sentido às suas dores físicas e também espirituais. Porque o Papa não esconde ser um homem, cuja missão o ultrapassa em tempo e lugar, cujo conteúdo não é apenas doutrinário, mas antes, social, político, necessário hoje a todos nós.
Quando o Papa Francisco se dirigiu aos altos representantes políticos e diplomáticos do país, procurou mostrar conhecer um pouco da nossa cultura, da nossa história, e fez questão de aprofundar alguns desses aspetos, para a partir daí chegar a um horizonte muito mais largo, universal.
Na cidade de Lisboa o Papa vislumbrou o sentido missionário do nosso povo. Francisco quis valorizar um dos aspetos mais extraordinários que a expansão marítima trouxe a Portugal - o início da globalização. Este aspeto, não meramente circunstancial, mas antes radical (de raiz, de alicerce), define o que é hoje o país. E Lisboa nasceu e tornou-se lugar de encontro de muitos povos, que ainda hoje continuam a nela chegar, visitar e habitar. São muitos os estrangeiros, os imigrantes, de muitas línguas e proveniências, que nos recordam que somos um país reconhecido pelo acolhimento e pela proximidade. O Papa mencionou mesmo que Lisboa se tornou multi-étnica e multicultural. Somos um povo de povos. A Igreja tem sido essa experiência ao longo de 2000 anos, porque se entende como uma comunidade de múltiplas e diversas comunidades.
Não é por acaso que o Papa o refere, porque é sobejamente conhecido entre nós o crescimento da rejeição, do repúdio, do aumento das barreiras sociais que procuram afastar quem se aproxima, ou de quem nos queremos aproximar. O Papa lembrou aí mesmo que Lisboa tem essa possibilidade, de mostrar à antiga Europa, de que não há necessidade para medos que nos contraponham uns aos outros, que nos afastem. Essa é a identidade daquela que é a capital europeia mais ocidental, mais próxima do fim da terra, e do início do mar. Afinal, a nossa identidade cultural nacional tem nessa universalidade a sua espinha dorsal. Sem essa consciência como poderemos olhar hoje o fenómeno da migração com que nos deparamos todos os dias? Nas linhas proferidas pelo Santo Padre estavam muitas interrogações cujos ecos podemos facilmente reconhecer nas nossas ruas, nos espaços que frequentamos, e que melhor espaço para lançar este tema se não no Centro Cultural de Belém, espaço cultural, intergeracional, internacional, lugar onde facilmente essa reflexão pode ser mais natural, ladeados pelo Mosteiro dos Jerónimos, de frente para o Tejo, corredor maior desse dinamismo de outrora, e que sempre trouxe nele muitos povos de muitas proveniências, e que hoje se arrisca a fechar-se sobre si mesmo.