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“O monstro na primeira página”

Este é o título de um filme italiano, de 1972, de que alguns leitores se lembrarão, marcante na história do cinema, da autoria de Marco Bellocchio e com uma notável interpretação do actor Gian Maria Volontè.

“O monstro na primeira página”

Foto: Jornal Renovação

Jorge Sarabando é activista cultural com obras publicada sobre história contemporânea, antigo autarca, e dirigente do PCP, com o Curso de Defesa Nacional do IDN.

O enredo conta-se, no essencial, em poucas palavras. Em Milão, durante uma campanha eleitoral, é encontrado o corpo assassinado de uma jovem da alta burguesia. Num importante jornal local, ligado ao poder económico, é apontado como autor do crime outro jovem, ligado aos meios de esquerda. O verdadeiro criminoso é, no entanto, identificado, e teria agido por motivos passionais. Mas a direcção tudo fará, pressionando o jornalista, para que o facto seja ocultado pelo menos até ao dia das eleições. Filme premiado, gerou larga polémica mas ficou como um clássico do cinema pelo tema escolhido, o da censura e da manipulação informativa ao serviço de interesses políticos.

Vem esta memória ao caso de uma descarada manipulação informativa, patente nos últimos dias.

O semanário “Nascer do sol”, de 14 de Agosto, titula a toda a largura da 1ª página: “Imigrantes geram rutura inédita de sangue tipo A”. No lied da notícia, que faz de sub-título, seis linhas abaixo, em letra miúda lá vem o contraditório: “o Instituto Português do Sangue e da Transplantação desdramatiza e garante que não há falta de sangue”. Dir-se-ia que a notícia se desmente a si própria e a quem dirige o jornal interessou não a notícia, que não era informação verdadeira, mas o efeito da notícia. Uma acha mais na fogueira de ódio contra os imigrantes.

Sabemos a quem serve esta deriva: num tempo de afrontosas e crescentes desigualdades, à minoria beneficiária do sistema económico de matriz neo-liberal interessa, não a acção organizada de quem trabalha, ou trabalhou, por justos rendimentos, mas alimentar o ressentimento, que divide e fragmenta. Nada melhor, para tal minoria, que voltar trabalhadores contra trabalhadores para manter tudo como está. Para não falarmos da desumanidade que esta onda envolve.

Os exemplos de manipulação informativa, subtil ou grosseira, multiplicam-se. Bastaria percorrer as primeiras páginas dos maiores jornais ou certos rodapés dos telejornais de maior audiência, para encontrar múltiplos sinais de quem procura, mais do que informar, induzir opiniões, condicionar ideias, formatar consciências.

Surgem vozes, por isso, que afirmam ter a manipulação passado do estado artesanal ao industrial, e vão referindo a emergência de uma “ditadura mediática” e a força do “quarto poder”, lembrando massacrantes campanhas como a das “armas de destruição massiva”, que afinal nunca houve, para justificar a invasão do Iraque, ou a da suposta “limpeza étnica” de sérvios contra albaneses, para justificar a criação de um Estado artificial, o Kosovo. Mas, de facto, a Comunicação Social não é um poder em si, é um meio, que os interesses dominantes económicos, políticos e militares procuram instrumentalizar. Interesses representados por testas de ferro, cujas identidades mal se conhecem, operados no terreno por aqueles que o Prof.Yves Citton designa por “classe vectorialista”, em que se encontram os que “decidem acerca da programação, o que passa e não passa e sobre o modo como passa. Não são donos dos meios de produção, são empregados, mas têm o controlo do vector, têm um poder editorial”. *

O que se passa na comunicação social é, no tempo em que vivemos, ampliado pelas redes sociais, onde não é tanto a pessoa que escolhe a informação mas a informação que escolhe a pessoa. No tropel de notícias que nos chegam na palma das mãos, onde não sobra um minuto para reflectir, formam-se as teias da censura e do condicionamento. É o tempo em que vivemos.

A comunicação social não é um poder em si, como dizíamos, mas tem um imenso poder, quando dá a conhecer a verdade informativa, e quando a oculta.
Não foi por acidente que o governo israelita provocou a morte de mais de duzentos jornalistas que faziam a cobertura da guerra na Cisjordânia e em Gaza, foram mortes deliberadas. Em Gaza, onde cidades inteiras são destruídas por bombardeamentos, já foram mortas mais de 60 mil pessoas, na maioria mulheres e crianças, outras vão morrendo de fome, mais ainda são mortas quando procuram matar a fome e a sede, o que sabemos graças aos heroicos jornalistas que lá permanecem. Seis deles foram mortos, há dias, num ataque planeado pelos militares israelitas.

Apesar dos apelos da ONU, de larga maioria dos Governos, das manifestações imensas em todo o mundo, em alguns casos reprimidas, apesar dos impressionantes protestos em Israel, apesar dos veementes apelos dos Papas Francisco e Leão XIV, pelo termo da guerra, o momento da paz parece ainda distante.
Mas, quando se preparam novos conflitos e os orçamentos militares aumentam, surgem também sinais de uma renovada e mais ampla consciência, entre todos os povos, da tragédia e do absurdo da guerra, da urgência, da busca imperiosa dos caminhos da paz, como futuro da humanidade.

A luta pela verdade informativa é hoje decisiva na defesa da liberdade, da democracia, da justiça, da paz.

9/09/2025

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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*Jornal Público, 1 de Junho de 2025

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