Inquietação e esperança
Há o olhar de uma criança que me tomou por estes dias, de que não consigo desprender-me. Já não sei onde colhi a imagem que tanto me impressionou, onde uma menina, entre casas em ruínas, num vestido rasgado e coberto de poeira, cabelos em desalinho num rosto onde despontava um olhar, um certo olhar, não implorativo mas magoado, sem vestígios de pranto, mas onde se lia fadiga e desamparo, um grito sem voz.
Foto: Jornal Renovação
Jorge Sarabando é activista cultural com obras publicada sobre história contemporânea, antigo autarca, e dirigente do PCP, com o Curso de Defesa Nacional do IDN.
Um olhar que (nos) interpelava, preso a um fio de vida.
Um novo ano se inicia e há sinais inquietantes nos discursos dos mais altos responsáveis.
O novo Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que já no mandato anterior, tinha exigido aos seus aliados da NATO o aumento das despesas militares para 2% do PIB, o que vários países, como Portugal, se comprometeram a alcançar, vem agora anunciar que tal subida deverá ser para 5%.(1)
O novo Secretário-geral da NATO, o holandês Mark Rutte, Primeiro-ministro do seu país durante 4 anos, membro do Partido Popular para a Liberdade e Democracia, concorda com a elevação das despesas militares, admitindo, entre sorrisos de ocasião, que poderá ter de haver cortes no plano social. Afirmou ele, sem rodeios: “Quando se olha para o que os países despendem em pensões, na Segurança Social e na saúde, precisamos de uma fracção desse dinheiro para garantir que os gastos com a Defesa cheguem a um nível em que possamos sustentar a nossa dissuasão a longo prazo”.
Se tal opção vier a prevalecer, poderá significar que o Estado social que ainda vigora, apesar de fragilizado por interesses privados a coberto da lógica do mercado, poderá ser substituído por um Estado de guerra permanente. Os investimentos em benefício dos povos e protecção dos direitos humanos, ou no plano ambiental, tenderão a ser sacrificados pela corrida aos armamentos, que é uma corrida insana, sobretudo quando envolve potências nucleares.
Eles sabem que o aumento e a sofisticação dos armamentos não garantem qualquer superioridade militar porque geram, no campo oposto, investimentos idênticos de forma a procurar um equilíbrio de forças. Não criam qualquer tipo de progresso, apenas aumentam os fartos lucros das empresas produtoras de armamentos. Com as encomendas expectáveis, são de esperar dias gloriosos nas indústrias norte-americanas.
Disse o Papa Francisco no dia 1 de Janeiro, Dia Mundial da Paz, que, para além das perdas e do sofrimento que causa, “a guerra é sempre uma derrota, sempre”. Sábias e justas palavras. Mas vão contra a corrente no mundo ocidental. O discurso dominante é belicista.
O termo “percepção” é hoje dos mais usados no espaço mediático.
Assim se disse que Portugal era um dos países mais seguros do Mundo, mas havia a percepção de que era inseguro, logo associando um suposto aumento da criminalidade a outras etnias e ao maior número de imigrantes, não todos, claro, mas a maioria, os trabalhadores. Não há qualquer indicador conhecido que permita tal leitura. A percepção foi fabricada. Ordem se reclama em vistosos cartazes, bem colocados em movimentadas rotundas.
Assim se foram pontuando os votos de paz, tão comuns nos festejos da passagem de ano, com frases, mais cruas ou mais sibilinas, de altos responsáveis do nosso País e da União Europeia que apontam para a inevitabilidade de uma grande guerra, mais vasta e dilacerante do que as que estão em curso.
Assim se irá formando a percepção de que um grande conflito militar está iminente, é uma fatalidade, e haverá sacrifícios a fazer. Sempre pelos mesmos, os que vivem do seu trabalho, entenda-se.
Há quem pense, nas elites dirigentes ocidentais, agora como nos anos 20 e 30 do século passado, que a guerra é o caminho necessário para evitar uma grave crise social, de desfecho imprevisível, resultante de uma fractura que se vai abrindo entre uma maioria que trabalha e uma minoria que enriquece desmesuradamente, num sistema norteado pelo mercantilismo, em que prospera a economia especulativa e a fictícia.
Operosas milícias digitais irão semeando nas redes imagens e palavras convenientes e fake news convergentes na mesma finalidade.
A habituação à violência continuará a ser feita através dos filmes do streaming e videojogos de largo consumo entre crianças e adolescentes, induzindo a ideia de que a violência é um estado natural das relações humanas.
Regresso ao olhar daquela menina, que não me abandona. Atrás de si a imagem de uma escola em ruínas, atingida por bombas israelitas, em Gaza. Salvou-se por um acaso, outras crianças como ela pereceram. Na curta reportagem noticiosa ouviam-se os gritos dos pais, ajoelhados junto de pequenos corpos já envoltos num pano branco. Não há doutrina militar que justifique a destruição sistemática de escolas e hospitais como, há mais de um ano, acontece na terra mártir da Palestina. Não são danos colaterais, dezenas de milhares de crianças, mulheres, pessoas inocentes, tornaram-se alvos directos das máquinas de morte.(2)
Mais do que palavras de esperança, nascida da indignação, é preciso que um grande clamor, em todo o mundo, se erga e se faça ouvir: Não à violência! Não à guerra! Paz sim! Paz sim! Paz sim!
10/01/2025
A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.
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(1) A vitória eleitoral de Trump não foi tão grandiosa como as notícias anunciaram. A abstenção aproximou-se dos 40%. Os dois principais candidatos, que beneficiaram de doações dos maiores milionários, tiveram: Trump 49,9%; Harris 48,4%. Outros candidatos tiveram pequenas votações. Apesar da curta diferença na votação, no Colégio Eleitoral foi maior nos delegados eleitos, apoiantes dos dois candidatos, respectivamente 312 e 226.
(2) O trabalho dos jornalistas em Gaza merece apreço e reconhecimento. Sem eles, a sua coragem e, por vezes, heroísmo, não nos chegariam notícias e imagens da tragédia que ali acontece