Em Santiago, ao amanhecer
1 - No final de uma viagem, para celebrar a Revolução de Abril numa comunidade perto de Santiago de Compostela. Passagem breve pela cidade. Como sempre, uma multidão de peregrinos nos caminhos da Catedral.
Foto: Jornal Renovação
Jorge Sarabando é activista cultural com obras publicada sobre história contemporânea, antigo autarca, e dirigente do PCP, com o Curso de Defesa Nacional do IDN.
Aqui e ali, sem abrigo residentes, a quem os moradores cumprimentam com bonomia. Sem tecto mas com alimento, assim parece. Mas, à frente de cada um, o paninho no chão para receber moedas.
Estugo o passo, para o autocarro de regresso ao Porto. Do outro lado da rua, um pouco à frente, reparo casualmente num homem a caminhar no mesmo sentido. Bem vestido, fato justo, à moda, gravata, sapatos a brilhar, óculos escuros. De súbito, o homem pára, senta-se, encostado a uma parede e, de olhos no chão, coloca uma boina, para recolher moedas.
Mais devagar, olho para trás, discretamente, e lá estava, imóvel, rosto fechado, de olhos sempre no chão. Impossível esquecer, apagar a imagem daquele homem, ainda jovem, bem posto na vida, pode imaginar-se, agora sentado no chão, à espera de moedas deixadas por algum passante condoído.
De regresso ao Porto, ao fim do dia, a um canto de certas ruas já lá estão os cobertores e os cartões para pessoas passarem a noite, e entre a gente que passa há olhares fundos, em que se presente um desespero, uma urgência. Mas é preciso andar, andar.
2 – Esta imagem recorrente nas grandes cidades, de viandantes que passam e de alguém que pede ajuda na margem da estrada, desperta na memória a parábola do bom samaritano, admiravelmente evocada pelo Papa Francisco, na encíclica “Fratelli tutti”. A história de um homem, vítima de salteadores, ferido na margem duma estrada, por quem todos passavam sem se deterem, até que houve alguém que olhou, parou, se condoeu e procurou salvá-lo.
Mas a palavra de Francisco vai mais longe, não se limita a descrever um acto caritativo, movido pela compaixão. Sem perder a mensagem alegórica, transcende a esfera individual. Diz-nos, na mesma encíclica, que uma sociedade está enferma, se procura construir-se “de costas para o sofrimento”. “A inclusão ou exclusão da pessoa que sofre na margem da estrada define todos os projectos económicos, políticos, sociais e religiosos”. Afirma persistirem “hoje no mundo inúmeras formas de injustiça, alimentadas/…/ por um modelo económico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar homens”. E sublinha “hoje como ontem, na raiz da escravatura, está uma concepção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objecto”. Palavras iluminadas.
3 -Na sociedade em que vivemos, o poder económico dominante promove as desigualdades e procura instrumentalizar o poder político democrático. Exibe lucros de milhões de euros por dia, em contraste com a pobreza que não cessa de aumentar, com o desemprego, a precariedade, a desregulação laboral, os escassos rendimentos de quem trabalha ou trabalhou. São cada vez mais os descartáveis, os que ficam na margem da estrada. É por isso essencial para o poder económico empolar o individualismo, pregar a resignação, desacreditar as alternativas, incitar ao ódio, banalizar a violência, justificar as guerras, louvar os casos de sucesso e apagar os demais, enaltecer a competição como paradigma, criar líderes com soluções milagrosas, para o que são úteis as indústrias de entretenimento e a manipulação informativa. Tudo, para que a exploração permaneça como está, tudo menos o que faz falta: consciência democrática e solidariedade humana.
4 – É uma sociedade assim, cada vez mais desigual, à mercê dos interesses dos grandes grupos financeiros, que se está a formar na União Europeia, de que Portugal faz parte. Dois organismos, sem escrutínio democrático, detêm poderes imensos e determinantes na condução da economia dos Estados, cada vez menos soberanos: a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu.
Vota-se nestes dias para o Parlamento Europeu, que tem competências limitadas. Mas como é importante para o nosso futuro colectivo que sejam eleitas mais vozes livres, preocupadas com a justiça social, a paz e o progresso dos povos.
Para que não haja mais e mais feridos na margem da estrada pedindo ajuda perante a indiferença de quem passa.
3/06/2024
A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.