Duelo ao pôr do sol
Era assim em fitas do far-west: no final os dois protagonistas enfrentavam-se de pistola na mão e, por respeito aos costumes e sossego das plateias, o justo matava o vilão.

Foto: Jornal Renovação
Jorge Sarabando é activista cultural com obras publicada sobre história contemporânea, antigo autarca, e dirigente do PCP, com o Curso de Defesa Nacional do IDN.
Todos os dias, invariavelmente, as televisões do mundo inteiro dão novas sobre o andamento do grande duelo eleitoral em preparação nos Estados Unidos, que terá lugar em 5 de Novembro. Até lá veremos a moldura de figurantes que sempre guarnecem os palcos, a mostrarem bem os cartazes com o nome dos candidatos, Harris e Trump, que assomam depois, a deixar cair o aguardado soundbyte entre acenos triunfais.
A política vira espectáculo, sem o qual os votantes não se mobilizam para uma escolha tão marcante, mas habitualmente diminuída por larga abstenção.
Dir-se-ia que os dois candidatos em tão renhida como estrepitosa competição mais parecem duas faces da mesma moeda, servidora do mesmo sistema económico. Significam uma alternância para que não aconteça uma alternativa.
E aqui reside uma das singularidades do modelo eleitoral norte-americano: há mais candidatos mas só dois contam, de apenas dois partidos, o republicano e o democrata, curiosamente simbolizados por um elefante e um burro. Só os dois beneficiam das doações milionárias dos grandes empresários, financiadores das campanhas eleitorais. (1)
Outra singularidade reside no facto de um dos candidatos poder ter mais votos e, no entanto, perder a eleição, dado que a eleição não é directa mas sim de um colégio eleitoral representativo dos Estados que compõem a União.
Os dois candidatos esforçam-se por mostrar as suas diferenças na política interna, onde os efeitos sociais da degradação económica são avassaladores, bem visíveis nas ruas de muitas cidades, em que se alongam as tendas de campismo, onde vivem os descartáveis que o sistema gerou. Os índices de pobreza têm crescido, fazendo lembrar os trágicos anos 30. “América, grande de novo”, de Trump, foi o slogan certeiro para semear ilusões em terras secas pela fome, o desespero e o efeito das drogas. Assim como, antes, o slogan “Yes, we can!”, de Obama, foi brilhante para devolver a esperança na floresta do desencanto.
Um dos expedientes de que a classe dirigente se serve para gerir a grave crise social sem nada alterar é atirar o odioso para cima dos diferentes, dos imigrantes. Para sobrevivência do sistema, é essencial que as desigualdades e a pobreza nunca possam ser atribuídas à concentração da riqueza por uma minoria de grandes empresários e especuladores. Para acirrar os ódios, Donald chegou a acusar os imigrantes haitianos de comer cães e gatos de estimação das famílias americanas. Kamala riu-se imenso para o desacreditar. Mas, pouco depois, a mesma Kamala veio a público expor um minucioso programa para impedir nas fronteiras a entrada de mais imigrantes nos Estados Unidos.
A democracia norte-americana apresenta-se como modelar e exemplo a seguir em todo o mundo. Mas é impressionante o número de Presidentes eleitos que foram alvo de atentados ou assassinados. Entre estes, dois dos mais notáveis: Abraham Lincoln (republicano) e John Kennedy (democrata).
Assim como impressiona que algumas das promessas eleitorais mais fortes dos candidatos a Presidente fiquem depois pelo caminho. Uma das mais conhecidas foi a promessa de Obama de encerrar a prisão da base de Guantanamo, esse abjecto laboratório de tortura, onde são ignorados os direitos humanos por todo o mundo reconhecidos. Acabou o seu segundo mandato sem cumprir o prometido e a prisão lá continua, como imagem do inferno e símbolo imperial.
Se na política interna é possível assinalar distintos alinhamentos, movimentos ultra-conservadores mais comuns no Partido Republicano, movimentos progressistas no Partido Democrata, na política externa não é possível identificar diferenças substantivas entre Presidentes republicanos e democratas.
Se o País tem 750 instalações e um milhão e meio de militares fora do seu território, se passou em estado de guerra 231 dos seus 248 anos de história, se, depois do anunciado “fim da história”, nos idos de 90, promoveu a expansão da NATO, na sua origem uma aliança formalmente defensiva, se tem, e não cessa de aumentar todos os anos, as maiores despesas em armamentos, e procura coagir agora os países aliados em aumentar as suas para o mínimo de 2% do PIB; se as indústrias militares pagaram, em 2023, 7,8 milhões de dólares a think tanks, equipas de análise destinadas a criar doutrina e promover mensagens belicistas, nos meios académicos e mediáticos, e ainda mais pagam de investimento na próspera indústria de lobbying, para convencer agentes políticos a defender os seus interesses nos centros de decisão; se o País levantou a mão e abriu a bolsa para forjar e financiar golpes militares sangrentos que instauraram, só entre os anos 50 a 70, ditaduras tenebrosas como no Irão, na Indonésia, no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Chile de Allende, no Congo de Lumumba, entre muitos outros Países;se o País, para defender interesses económicos e financeiros, ordenou, só nas últimas três décadas, às suas Forças Armadas a invasão de Estados independentes como o Panamá, Granada, Iraque, Afeganistão e levou a guerra até à Sérvia, à Líbia ou à Síria.
Se o País, falando de paz, alimenta a guerra de Israel contra os palestinianos, um verdadeiro genocídio à vista de todo o mundo; se o País continua a impor o Bloqueio a Cuba, apesar da condenação todos os anos, desde 1992, pela Assembleia Geral da ONU - na última votação, a proposta apresentada teve 187 votos a favor, 2 contra (Estados Unidos e Israel) e 1 abstenção (Ucrânia); não importa: os Presidentes responsáveis por esta violência sem fim, por milhões de vítimas, pela fome, pelo êxodo das populações, pertencem aos dois Partidos, o Republicano e o Democrático. Leia-se a História.
Os dois candidatos que se enfrentam em 5 de Novembro têm uma visão comum da política externa.
Expansão da NATO na Europa e cerco à Rússia, prosseguimento da guerra no Médio Oriente, preparação da guerra na Ásia/Pacífico, no enfrentamento com a China. Sempre contra o interesse dos povos, sempre em benefício das indústrias armamentistas e afins.
O poder do “complexo militar-industrial”, já identificado pelo antigo Presidente Dwight Eisenhower (republicano), parece ilimitado, e o caminho da guerra a solução adoptada pelas elites dirigentes norte-americanas para reverter o declínio da hegemonia económica, militar e estratégica.
O duelo que se aproxima, no próximo dia 5 de Novembro, não será, como nos filmes antigos, entre justos e vilões.
Seja quem for o vencedor, o mais importante é que as vozes da Paz se façam ouvir mais alto.
(1) Os outros 3 candidatos são: Cornel West, Jill Stein e Chase Oliver
14/10/2024
A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.