O bem que a gente faz aos outros, não conta
Todos nós somos fruto das experiências que vivemos, todos nós temos a nossa consciência e
capacidade de pensar e por isso todos nós somos diferentes perante a realidade.

Miguel Friezas é licenciado em Sociologia e activista sindical.
No meu caso em particular, e sem que utilize isso como medalha ou estatuto, posso-vos dizer
que sei o que significa ser pobre.
Sei que os meus avós não tinham casa de banho em casa; sei que nas minhas primeiras
memórias a latrina era em madeira, o banho era num grande alguidar e a água aquecida no
fogão. Sei o que é ter uma barraca de contraplacado e lusalite como cozinha.
Era criança, vi bons rapazes, daqueles que todos gostam, sucumbir ao flagelo da droga, serem
presos e definharem.
Vi e convivi com muita pobreza. Na minha escola, algumas crianças tinham fome, lembro-me
de um menino que ia buscar o irmão à escola e vestia roupas grandes ou “de menina” porque
era o que havia para lhes vestir. Era na escola que momentaneamente matava a fome com o
leite e a sandes do dia.
Muitas das vezes, os pais eram “fura-vidas”, ganhavam dinheiro com biscates, com a venda de
animais ou sucata.
Por outro lado, conheci a solidariedade mais bonita, aquela em que as pessoas se ajudam por
fraternidade e respeito pelo próximo. Recordo situações em que quem já mal tinha para si,
quando estava um pouco mais desafogado, num gesto incrível de solidariedade, dava a outros
sem pensar no próprio amanhã.
Mesmo os que iam presos tinham direito a uma visita, a fruta ou a um maço de tabaco, porque
era a maneira de atenuar a pena e mostrar que cá fora haviam pessoas que acreditavam que
ao fazer “o bem” é possível transformar.
Quando a minha avó esteve acamada foram as vizinhas que ajudaram a tratar dela, era o
merceeiro que nos piores períodos suportava a alimentação e em casa dos meus pais, sempre
vi entrar pessoas de credos e etnias diferentes, fosse para que o meu pai lhes reparasse o
carro ou a “luz da barraca”, ou para que a minha mãe ajudasse a ter acesso a abonos de família
e reformas. Um pequeno aparte: o carro era uma riqueza pois permitia às pessoas deslocarem-
se para vender e fazer algum rendimento, muitas das vezes servia de pensão.
A vida avançou e na maior parte dos dias nem me lembro desse nível de pobreza, não que a
ignore mas porque está mais longe do meu quotidiano.
Eis que no passado fim-de-semana quando realizei a habitual visita à minha mãe, vi-a entregar
um micro-ondas avariado a uma Sra. de idade avançada, para que esta o vendesse para sucata
e obtivesse mais algum rendimento. A acompanhá-la estava a sua neta de três anos e que já
empurrava o grande e velho carrinho de mão.
Estava com os meus filhos e a única coisa que me ocorreu foi tratar aquela criança como
estava a tratar dos meus: falar-lhe, brincar e oferecer-lhe os mesmos bolos que os meus
estavam a comer.
Desde então não me sai da cabeça a frase que tantas vezes ouvia da minha mãe: “o bem que a
gente faz aos outros, não conta”.
Curiosamente, já se encontra disponível a auto-biografia do Papa Francisco, “Esperança”, livro
que bem pode servir de farol para todos e todas que acreditam que “o bem” vencerá e que
vale a pena lutar por ele.
Num mundo em que cada vez há mais individualismo e apelo à divisão, mesmo entre os
trabalhadores e os mais pobres, a solidariedade e a esperança devem ser as cores da bandeira
dos que se movem pela paz e a fraternidade. Só dessa forma conseguiremos um mundo justo
onde a pobreza não se perpetue geração após geração.
A pobreza não se combate com exclusão, desprezo ou caridade. Combate-se com
solidariedade, amor, respeito e oportunidades que apenas com um Estado humanista
vocacionado paras pessoas e o seu bem-estar é possível.
28/01/2025
A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.