Não dêem cabo do mundo
Aqui expresso uma palavra de solidariedade para com as populações da ilha da Madeira e com todos os profissionais envolvidos no combate aos incêndios que assolaram as suas vidas durante 12 dias consecutivos.
Miguel Friezas é licenciado em Sociologia e activista sindical.
Desde sempre que o fogo é associado ao inferno e tal não é de estranhar pois quem vivencia o terror do fogo a aproximar de si e dos seus pertences, tantas vezes conquistados com o esforço de anos de trabalho e privação, fica eternamente com marcas na sua memória.
No caso dos incêndios das duas últimas semanas, o inferno resultou em mais de 5000 Hectares de fauna e flora destruídos, mais de 30 famílias desalojadas e muitos bombeiros a necessitarem ser socorridos por exaustão.
Lamentavelmente, para todos nós, o incêndio na Madeira foi só mais um dramático episódio no que toca à destruição da “casa comum”, não podendo obviamente ser ignorados os grandes incêndios de 2017 que supostamente teriam servido para alterar toda a forma como olhamos para o ambiente e para a necessidade de prevenir a catástrofe.
Chegados a Agosto de 2024 percebemos que continuam a arder milhares de hectares de floresta e que o problema central continua a persistir: a falta de uma política de protecção das florestas e das populações.
É sintomático a substituição de espécies autóctones por plantas invasoras com fim de obter lucros de forma mais rápida (ex: eucalipto), a ausência de meios permanentes de limpeza e conservação de território florestal, a substituição de guardas florestais por vigilantes da natureza, a insuficiência dos meios de combate a incêndios de grandes dimensões e uma desvalorização e uma falsa condição voluntária de milhares de bombeiros. Mulheres e homens a quem justamente invocamos como soldados da paz, mas a quem os governos têm remetido para condições precárias de trabalho e consequentemente de vida.
A realidade científica tem demonstrado que o clima está a mudar e que existe mesmo uma crise ambiental que não pode ser ignorada pois coloca em causa a justiça intergeracional, a dignidade humana e no extremo a diversidade e a vida no planeta.
Citando o Papa Francisco: “As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida actual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está a acontecer periodicamente em várias regiões” (Laudato Si, 161).
Sempre que por ausência de coragem política ou por subserviência aos interesses do capital não são adoptadas, medidas que travem a crise ambiental e promovam a comunhão saudável do ser humano com o meio ambiente, os povos ficam mais pobres e com isso o mundo mais cruel e desumano. A nossa “casa comum” fica um pouco mais destroçada.
Os incêndios na Madeira terão efectivamente consequências na vida das populações que perderam os seus bens, nas chagas psicológicas que carregarão consigo ao longo da vida e no necessário equilíbrio ambiental para a vivência salutar na “Pérola do Atlântico” e reflectem a necessidade de tomar medidas políticas que defendam o interesse comum e o futuro das gerações que nos sucedem.
Voltando às palavras do Papa Francisco “Será realista esperar que quem está obcecado com a maximização dos lucros se detenha a considerar os efeitos ambientais que deixará às próximas gerações? (” (Laudato Si, 190)
Que as nossas vozes sejam então, mais que solidárias, sejam interventivas e tal como a canção, reivindiquem. “Não dêem cabo do mundo” (1).
https://www.youtube.com/watch?v=4MLGrMfBx8A
28/08/2024
A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.