Lá se fazem, cá se pagam.
Falemos de agricultura, falemos de trabalho e de dignidade humana.
Miguel Friezas é licenciado em Sociologia e activista sindical.
O Vale do Sorraia é das maiores áreas de agro-regadio do País. Situado a Sul do Rio Tejo, essa característica foi a principal responsável por a região ter sido berço de acolhimento dos primeiros povos da Península Ibérica e para que posteriormente tenha assumido um papel de relevo durante as ocupações mouras e romanas.
Produzir bens alimentares é de facto uma riqueza, afinal todos necessitamos de nos alimentar. Por isso mesmo durante o fascismo em Portugal o Vale do Sorraia e os seus trabalhadores sentiram a força do latifúndio e a exploração assim subjacente.
Nos pós 25 de Abril o Vale do Sorraia vivenciou a Reforma Agrária, mais bela conquista de Abril e que permitiu a milhares de trabalhadores agrícolas romperem com o sistema feudal (latifúndio) e melhorarem as suas condições de vida e da restante população.
Posteriormente a Reforma Agrária foi extinta a favor de interesses financeiros, que não os dos trabalhadores, e após 1986, ano em que Portugal aderiu à Comunidade Económica Europeia, foi-nos dito que a solução para a modernização e evolução da agricultura portuguesa seria a Política Agrícola Comum (PAC).
Prometendo uma suposta política que serviria todos os países da União Europeia, foi financiada a extinção de postos de trabalho, o que levou ao enfraquecimento dos operários agrícolas e suas reivindicações, foram distribuídos subsídios para não produzir ou inclusivamente para destruir cultivos que fossem considerados excessivos (o caso da vinha é paradigmático) e, pasme-se, a modernidade passava pela compra de jipes.
A União Europeia, através da PAC, disse-nos ainda o que podíamos ou não produzir e foi dessa forma que cada vez mais o Vale do Sorraia, que outrora possuía uma enorme heterogeneidade agrícola (arroz, milho, tabaco, tomate, beterraba, vinha, etc) ficou maioritariamente condicionado ao arroz e ao milho. Até as fábricas de tomate e de açúcar de beterraba que empregavam centenas de trabalhadores foram forçadas a encerrar.
Lentamente a agricultura portuguesa foi sendo empurrada para uma “economia de mercado” ou seja, quem decide os preços dos produtos são as grandes cadeias de distribuição, podendo a União Europeia financiar a produção com os impostos pagos pelos trabalhadores para que os hipermercados acumulem lucros escandalosos.
Hoje e à semelhança do que se passa no Alentejo, a generalidade dos trabalhos agrícolas não qualificados esta a ser realizado por imigrantes. Trabalhadores, mulheres e homens em condições de emprego precárias e com salários indignos, que não permitem fazer face ao custo de vida.
Maioritariamente asseguradas pelos imigrantes, porque as condições de trabalho são tão más, que sempre que lhes é possível os portugueses encontram alternativa à atividade agrícola, ficando esta reservada sempre para os mais desfavorecidos e com menor poder reivindicativo.
Imigrantes e portugueses, operários agrícolas, explorados por uma política de baixos salários e facilitamento de acumulação de riqueza pelos mais ricos dos sectores agroindustrial e distribuição. Uma política que foi instigada pela EU através da PAC, e que apesar das desvantagens para a soberania do País e para os trabalhadores portugueses, lamentavelmente receberam voto favorável de alguns eurodeputados portugueses.
Longe das conquistas que Abril trouxe à agricultura e aos trabalhadores agrícolas, infelizmente em algumas zonas o trabalho agrícola é sinónimo de pobreza e miséria.
Preocupação reconhecida pelo Papa Francisco na Carta Encíclica LAUDATO SI’ – Sobre o Cuidado da casa Comum: “43. Tendo em conta que o ser humano também é uma criatura deste mundo, que tem direito a viver e ser feliz e, além disso, possui uma dignidade especial, não podemos deixar de considerar os efeitos da degradação ambiental, do modelo atual de desenvolvimento e da cultura do descarte sobre a vida das pessoas.”
Quem defende a justiça social e a dignidade humana não pode estar de acordo com a forma como os trabalhadores agrícolas são tratados, não pode pactuar com as inevitabilidades e sabe que a dignidade humana vale mais que qualquer outro valor.
Conhecendo a história do Vale do Sorraia e de outras regiões, lhes digo: lá se fazem, cá se pagam.
“189. A política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia. Pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da vida, especialmente da vida humana.” (LAUDATO SI’)
Por esse motivo, dia 9 de Junho é necessário votar, é necessário que os democratas contribuam para o fim das políticas de empobrecimento e para que todos, mas mesmo todos, tenham acesso à dignidade e ao humanismo que merecem enquanto trabalhadores, cidadãos e seres humanos.
31/05/2024
A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.