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Cristo, Leão XIII e Francisco contra o Pacote Laboral

Quando colocado desta forma o título pode parecer uma ação provocatória. Mas não é. Pelo contrário, pretende-se chamar a atenção para três nomes fundamentais da Doutrina Social da Igreja e da forma como, dentro dos valores que defenderam, olhariam para o pacote laboral agora em discussão na “Concertação Social”.

Cristo, Leão XIII e Francisco contra o Pacote Laboral

Miguel Friezas é licenciado em Sociologia e activista sindical.

Esta reflexão surge, então, na sequência da anunciada revisão da legislação laboral em Portugal, que se inicia no sector privado e que certamente se estenderá depois, ao sector público, com o argumento da modernização e da eficiência. Uma alteração às leis que alterará o paradigma das relações de trabalho e que inevitavelmente terá consequências na vida de milhões de trabalhadores, das suas famílias e na sociedade como um todo, que ficará cada vez menos justa e menos solidária.

Não pretendendo alargar-me muito no campo teológico (que não domino), mas no Novo Testamento, a Bíblia fala-nos da vida, exemplo e mensagem de Cristo, filho de Deus. Cristo foi um “progressista”, trouxe esperança ao povo, aos mais pobres e demonstrou que a justiça social não está dissociada do pensamento cristão. Pelo contrário, proclamou “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus", numa demonstração de que é na humildade e não na avareza que residem os valores cristãos.

Mais tarde, em 1891, com o Papa Leão XIII e a encíclica Rerum Novarum, surge a Doutrina Social da Igreja, onde são transmitidos um conjunto de princípios com o objectivo de promover a dignidade humana, a solidariedade e a garantia do bem-comum. Esta Encíclica que surge em plena revolução industrial, ancora a Igreja e a acção dos católicos à luta pelo respeito devido à classe operária e aos trabalhadores e pelos direitos de quem trabalha.

No Século XXI, já depois do Concílio Vaticano II, o incontornável Papa Francisco foi um promotor, lutador e firme mandatário da Doutrina Social da Igreja, tendo o seu sucessor e actual Papa escolhido o nome de “Leão XIV”, assumindo assim a esperança de milhões de trabalhadores de que a Igreja não cesse a luta pela defesa da dignidade de quem trabalha. E bem precisamos dessa esperança e da confiança que é possível resistir aos intentos e manobras da ganância e do “Deus dinheiro”.

Vivemos tempos complexos, em que se acentuam as desigualdades e em que se procura cada vez mais “dividir para reinar”, em que se aponta o dedo a quem trabalha esquecendo ou escondendo que automaticamente três dedos ficam virados para benefício próprio. Tempos propícios a oportunismos e à sobrevivência do mais forte à custa dos que menos podem.

Não é difícil fazer o paralelo entre a exploração e o desprezo pela dignidade humana que se vivenciava na revolução industrial e o capitalismo neoliberal em que vivemos, onde mais uma vez, se apregoa a necessidade de trabalhar mais e mais, sem que isso signifique dignificar a vida de quem trabalha. Pelo contrário, procura-se retirar ao trabalhador qualidade de vida, e tempo com a família, oprimir o trabalho numa jaula moderna mas não muito diferente da que Ramsés tinha concebido para o povo judeu no antigo Egipto.

O pacote laboral é um passo gigante para o desenvolvimento e crescimento da “economia que mata”, retira direitos, empobrece e contribui para abafar a voz reivindicativa da justiça social.

Entre as várias propostas do Governo em discussão, nesta fase, com o apoio das Associações patronais, estão o aumento do banco de horas, a obrigatoriedade de trabalho aos fins-de-semana e feriados mesmo que o/trabalhador ou trabalhadora tenham filhos, a facilitação dos despedimentos, o aumento do tempo dos contratos a prazo, o dificultar o acesso aos direitos de parentalidade, a possibilidade de despedir para contratação de serviços externos, a obrigatoriedade de serviços mínimos em todas as greves e o condicionamento da liberdade, e ainda o esvaziamento da contratação colectiva, tornando-a num instrumento a belo prazer das empresas.

Das várias medidas, a que levantou mais indignação foi o condicionamento ao direito à amamentação (duas horas diárias), mas essa é a ponta visível de um colossal iceberg em que os trabalhadores estarão mais tempo longe das suas famílias, trabalharão mais horas sem que isso signifique melhorar as suas condições de vida e em que cada vez mais serão considerados peças descartáveis numa economia desumana e desumanizadora.

Também o direito a resistir, como Moisés e Cristo resistiram, sofrerá fortes condicionamentos. O exemplo dado pela Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses- Intersindical Nacional é bastante ilustrativo: com a obrigatoriedade de serviços mínimos, será imposto aos trabalhadores garantirem um funcionamento mínimo numa fábrica de batatas fritas. Em prole dos interesses do capital é proposto limitar as justas reivindicações e os direitos de quem trabalha, equiparando um pacote de batatas fritas a uma situação excepcional ou a um acto médico.

A Doutrina Social da Igreja não governa mas existe para promover valores basilares do cristianismo e fomentar a participação cívica, social e política em torno desses valores. E, por muitas voltas que se tente dar no discurso, o pacote laboral é contrário à perspectiva humanista da Doutrina Social da Igreja e profundamente contrário aos interesses dos trabalhadores.

Cristo, Leão XIII e Francisco certamente não hesitariam em mobilizar-se para travar as medidas em discussão. Esperemos que a Igreja de Leão XIV prossiga esse combate civilizacional.

Voltemo-nos para a “periferia” e longe do centro encontramos muitos milhares de trabalhadores que, já hoje, quando muito, passam um domingo em família, porque trabalham por turnos, mulheres que abdicam de direitos de parentalidade porque lhes é dado a escolher entre o emprego e estar com os filhos, jovens que não constituem família porque não têm estabilidade laboral e milhares de trabalhadores e trabalhadoras, que mesmo trabalhando imenso, não têm vencimento suficiente para pagar uma renda de casa, ou até mesmo para garantir uma alimentação diversificada e saudável aos seus filhos.

A indiferença mata, voltemo-nos para a “periferia” e fica claro que, mais que palavras precisamos de agir por um mundo melhor, por uma sociedade mais justa e fraterna, objectivos que ficarão mais longe se acontecer a aprovação do pacote laboral.

Felizmente, o direito a resistir, consagrado no Artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa, mantém-se intocável e todos e todas podem agir livremente, desde logo participando nas manifestações convocadas pela CGTP-IN no Porto e Lisboa, no próximo sábado dia 20 de Setembro.

Sabemos que quando se luta umas vezes ganha-se e outras vezes não. Mas quando não se luta, perde-se sempre.

E por isso confio. Confio que saberemos estar do lado certo da vida e que juntos reivindicaremos justiça social, igualdade e fraternidade, valores que só podem vingar através do respeito pelos trabalhadores e a sua dignidade.

16/09/2025

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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