A pobreza não é devoção
A escasso mês e meio do Natal, quadra de enorme simbolismo para todos os cristãos, antevê-se que este ano a noite de consoada seja mais difícil para muitas famílias.
Basta olhar um pouco à volta e percebemos que nesta recta final de 2023, a pobreza começa a firmar-se novamente em Portugal. Mas esta não é somente a pobreza tradicional, aquela pobreza estrutural dos pobres que lhe vêm negadas as oportunidades.
Miguel Friezas é licenciado em Sociologia e activista sindical.
Hoje muitos dos novos pobres são homens e mulheres que trabalham, mas que o seu salário não é suficiente para pagar o empréstimo ou a renda da casa, para pagar as principais contas, para comprar uma peça de roupa aos filhos que não param de crescer, para ir ao dentista, ou meramente para beberem um café.
A pobreza que hoje começa a firmar-se é envergonhada porque está afetar pessoas que até agora nunca precisaram de apoio, pelo contrário, muitas das vezes foram elas solidárias.
Basta refletir sobre o aumento das prestações bancárias, na inflação nos produtos alimentares, no preço da energia e compreende-se de onde surgem os novos pobres.
Já em 2021, a insuspeita Fundação Francisco Manuel dos Santos indicava que a pobreza era hereditária e que se agravava com o desemprego, a doença e o divórcio. A Fundação indicava ainda que o risco de pobreza era de 17,2% e que os mais vulneráveis eram os jovens e os idosos.
Mais recentemente o Governo revelou que no ano de 2022 a taxa de pobreza se fixou em 20,1%. Valores dramáticos para quem neles se encontra inserido.
O leitor consegue imaginar o drama de uma mãe ou de um pai que abre o frigorífico e não sabe o que fazer para alimentar os filhos? Certamente o mesmo que sentiu José na noite de Natal quando viu todas a portas se fecharem ao parto de Jesus.
Curiosamente os hipermercados, os call centres, a hotelaria e tantos outros sectores tendem em nivelar os salários pelo mínimo. Os mesmos que dizem que Portugal é um País pobre e que temos que nos conformar, não param de aumentar os lucros. No momento em que foi escrito este texto, o BPI anunciou um lucro de 390 milhões de euros nos três trimestres de 2023, mais 35% que no período homólogo em 2022.
Mas temos mesmo de viver assim? Enquanto cristãos ou membros de outras religiões terão de aceitar as desigualdades e a pobreza crescente? Não!
Os cristãos confiam que Jesus Cristo, filho de Deus, veio revolucionar o mundo, combater injustiças e proclamar a paz e o amor.
Para os cristãos, amar o próximo não pode ser ficar calado, aceitar as “inevitabilidades” e confundir caridade com solidariedade. O Natal não deve ser a opulência e o consumismo, tão convenientes, para aqueles que nos restantes onze meses apostam no empobrecimento dos trabalhadores, jovens e reformados.
Para os que acreditam em Cristo a sua missão é prosseguir a luta de Cristo contra as injustiças.
A pobreza não é devoção. Pelo contrário, a bíblia conta que Cristo multiplicou pães e peixes para saciar a multidão, que se insurgiu contra os vendilhões e rejeitou o autoritarismo romano.
E muito se fala da pobreza, mas a erradicação da pobreza passa sobretudo por garantir a igualdade, direitos sociais e laborais e sobretudo por uma distribuição justa da riqueza. No capítulo da distribuição da riqueza, o salário é essencial pois só com um salário justo e digno é possível pagar as despesas mais elementares e dar um futuro aos pobres.
Esta é uma luta que não pertence só aos cristãos. É a luta de todos os que acreditam na justiça e na bondade de Deus, é luta dos justos.
10/11/2023
A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.