Tapar os Olhos
Em 17 de Outubro de 2025, a Assembleia da República aprovou, em votação na generalidade, o Projecto de Lei n.º 47/XVI/1.ª, que proíbe a ocultação do rosto em espaços públicos, salvo algumas excepções.

Sérgio Dias Branco é professor da Universidade de Coimbra, dirigente da CGTP-IN, e leigo da Ordem Dominicana da Igreja Católica.
Diferentemente do que alguns defensores da medida sugeriram, o diploma menciona explicitamente as “burcas” e os “niqabs,” classificando-os como “trajes religiosos islâmicos” que dificultam a identificação. A burca é uma vestimenta integral que cobre o corpo e o rosto, incluindo os olhos, protegidos por uma rede de tecido que permite ver sem ser vista. O niqab, por sua vez, cobre o rosto, deixando apenas os olhos visíveis. Ambos diferem de trajes islâmicos muito mais comuns, como o hijab, um lenço que cobre apenas o cabelo e o pescoço, e a abaya, um manto longo e solto que deixa o rosto descoberto. A referência directa aos trajes religiosos islâmicos no documento legislativo deixa claro o seu alvo simbólico: as mulheres muçulmanas que usam véu integral—um grupo ínfimo, praticamente invisível em Portugal, mas transformado, por efeito retórico, num problema de ordem pública.
A proposta foi aprovada com os votos de Chega (proponente), PSD, IL, e CDS-PP, com os votos contra de PS, Livre, PCP, e BE, e as abstenções de JPP e PAN. A justificação invoca princípios de laicidade, segurança, e vida social. Contudo, sob essa superfície normativa, opera uma lógica de diversão política: criar um inimigo simbólico (a mulher muçulmana velada), inventar uma ameaça identitária e oferecer uma resposta fácil para um problema inexistente. Trata-se, portanto, de uma tentativa de tapar os olhos dos portugueses para os problemas que realmente corroem o seu quotidiano—o custo de vida, a precariedade, o desemprego, a falta de habitação e a degradação dos serviços públicos.
Condenar todas as formas de opressão e de subjugação das mulheres é um dever ético. No entanto, multar ou criminalizar as mulheres que cobrem o rosto (forçadas ou não) em nada as protege: antes as pune, em vez de punir quem eventualmente as força. O resultado previsível é o isolamento: mulheres que usam véu integral sentir-se-ão forçadas a abandonar o espaço público, a renunciar a estudar, trabalhar ou simplesmente circular. A lei que diz libertar converte-se, assim, num instrumento de exclusão. Há aqui uma contradição elementar: ao pretender proteger as mulheres da opressão de serem vestidas por outrem, o Estado passa ele próprio a ditar o que elas podem vestir. É uma nova forma de tutela, disfarçada de emancipação—como se, em nome da liberdade, se trocasse um véu por outro, invisível mas igualmente imposto. Agora, a imposição vem com o selo do Estado. Além disso, ao contrário do que afirmam os defensores da proibição, o quadro legal português já permite às autoridades identificar qualquer cidadã (ou cidadão) sempre que necessário, sem necessidade de criminalizar opções religiosas ou culturais.
O gesto é populista no sentido clássico: criar um inimigo simbólico—neste caso, a mulher muçulmana velada—, inventar um perigo cultural e um inimigo imaginário (o Islão), dramatizando-o, projectando autoridade, e oferecer uma resposta fácil a um problema inexistente, em vez de enfrentar a desigualdade e a exclusão social estruturais. A lei, travestida de neutralidade e segurança, acaba por institucionalizar a desconfiança e reforçar fronteiras identitárias entre o “nós” e o “outro.”
É abusivo identificar o Islão com o uso da burca, ou mesmo do niqab. Mesmo nos países de maioria muçulmana, trata-se de uma prática minoritária e mais cultural do que religiosa. O niqab e a burca são comuns apenas em regiões específicas, como certas zonas do Paquistão rural, e não têm base corânica universal. Na própria Arábia Saudita, frequentemente citada como símbolo do conservadorismo islâmico, a obrigatoriedade da cobertura facial foi abolida em 2018, com o reconhecimento de que a prática não é uma exigência religiosa. O uso da burca é raríssimo e não faz parte da tradição saudita. O niqab, que foi durante décadas o padrão entre as mulheres do país, encontra-se hoje em declínio, à medida que as reformas sociais alargam o espaço de escolha individual.
Ainda assim, importa reconhecer que o debate em torno da burca não é exclusivo do Ocidente. Pelo menos catorze países de maioria muçulmana (entre eles a Tunísia, o Marrocos, o Egipto, a Síria, o Cazaquistão, ou a Indonésia) adoptaram proibições totais ou parciais do véu integral em espaços públicos ou institucionais, invocando razões de segurança, identidade nacional, ou separação entre religião e Estado. O facto de o fenómeno ser global não o torna mais legítimo: apenas revela a diversidade interna do Islão, por um lado, e a tentação universal de legislar sobre a consciência individual, por outro. Em qualquer latitude, proibir o que uma mulher pode vestir em nome da sua libertação é reproduzir o mesmo paternalismo que se afirma combater.
O debate europeu sobre o véu integral tem longa história, analisada criticamente por Leila Ahmed e Lila Abu-Lughod. O véu foi, desde o século XIX, construído pelo colonialismo ocidental como símbolo de atraso e de inferioridade cultural. O “desvelamento” tornou-se uma metáfora de modernidade e civilização, legitimando intervenções políticas e morais sobre as sociedades muçulmanas. O corpo feminino foi convertido em campo de batalha ideológica—e o mesmo padrão repete-se hoje, quando parlamentos europeus discutem, com fervor, o que as mulheres podem ou não vestir. A lei portuguesa reencena essa lógica: ao invocar a “vida em sociedade” como justificação, transforma a visibilidade do rosto num sinal de adesão à identidade nacional, como se a cidadania dependesse da exposição facial.
A esta retórica soma-se o chamado “feminismo de salvação,” que pretende libertar mulheres muçulmanas sem as ouvir, impondo-lhes outro modelo de conduta. Trata-se de um discurso fundado numa arrogância moral, que fala por elas e não com elas—sem as escutar, respeitar, ou reconhecer a sua autonomia. Seguindo essa linha, o Projecto de Lei aprovado em Portugal confunde emancipação com imposição, igualdade com uniformização, e laicidade com coerção.
É aqui que a experiência francesa se torna instrutiva. Em 2010, antes da proibição do véu integral, a Conferência Episcopal Francesa opôs-se à lei, lembrando que “a liberdade religiosa deve ser respeitada” e que “o diálogo é preferível à interdição.” Os bispos católicos advertiram também para o risco de efeitos internacionais nocivos, alertando que restringir práticas muçulmanas em França poderia servir de pretexto para represálias contra cristãos em países de maioria islâmica. O Bahrein ilustra bem esse equilíbrio frágil.
Há uma relativa abertura (liberdade de culto reconhecida e igrejas visíveis, como a Catedral de Nossa Senhora da Arábia), mas a convivência continua dependente da benevolência do Estado. Nesse país, as conversões do Islão são desencorajadas e a crítica religiosa pode ser punida. O mesmo ocorre em vários países de maioria cristã, como a Tanzânia ou o Uganda, onde comunidades muçulmanas enfrentam restrições ao culto e a suspeição institucional. A lição é clara: quando um Estado legisla contra uma minoria, abre caminho para que outros possam fazer o mesmo. A liberdade religiosa é um espelho: o modo como tratamos democraticamente a diferença em casa define o que podemos esperar quando formos nós os diferentes. Quinze anos depois, os factos falam por si: a lei francesa não libertou ninguém, não promoveu a igualdade e apenas agravou a exclusão das mulheres mais vulneráveis. O precedente devia servir de aviso a Portugal: legislar sobre símbolos raros é sempre mais fácil do que enfrentar injustiças comuns.
20/10/2025
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