Paz e comunhão (4)
Na parte final da mensagem, o Papa Francisco apela a que todos estes desafios da actualidade sejam uma oportunidade para vencermos a nossa resistência a deixarmos que “Deus transforme os nossos critérios habituais de interpretação do mundo e da realidade” (1).
Sérgio Dias Branco é professor da Universidade de Coimbra, dirigente da CGTP-IN, e leigo da Ordem Dominicana da Igreja Católica.
Esta conclusão já não utiliza a palavra “juntos.” Em vez disso, usa a palavra “nós.” Podemos dizer que este passo corresponde à passagem da junção à comunhão, do movimento de congregar pessoas ao seu comportamento como um corpo uno e diverso, porque diversa é a humanidade e, por conseguinte, diversa é a Igreja, com diferentes ordens religiosas e diferentes movimentos da Acção Católica. Este “nós,” como a mensagem salienta, abre-se à “fraternidade universal” (2). O apelo procura uma resposta que se traduza num compromisso efectivo na reparação e cura das chagas das sociedades humanas e do planeta que as alberga, “criando as bases para um mundo mais justo e pacífico, seriamente empenhado na busca dum bem que seja verdadeiramente comum” (3).
Os problemas acumulam-se e podem soterrar a nossa vontade de os enfrentar. Precisamos de uma chave de leitura e esta mensagem dá-nos a ver uma verdade que, neste mundo hiperligado nos pode escapar quando a nossa atenção é dividida em instantes desconectados e quando a nossa vida é compartimentada em gavetas estanques. Escreve Francisco: “as variadas crises morais, sociais, políticas e económicas que estamos a viver encontram-se todas interligadas, e os problemas que consideramos como singulares, na realidade um é causa ou consequência do outro” (4). O reconhecimento desta interligação implica que, mesmo que nos empenhemos mais nesta ou naquela causa específica, não há espaço para a indiferença ao sofrimento de qualquer pessoa. A nossa posição deve ser de compaixão, aceitando sofrer com essas pessoas, na medida em que tal é possível, e de responsabilidade, contribuindo para erradicar as causas desse sofrimento. A mensagem elenca um conjunto de acções vigorosas que respondem aos desafios do nosso tempo e que vale a pena citar na totalidade porque são concretas: repassar o tema da garantia da saúde pública para todos; promover ações de paz para acabar com os conflitos e as guerras que continuam a gerar vítimas e pobreza; cuidar de forma concertada da nossa casa comum e implementar medidas claras e eficazes para fazer face às alterações climáticas; combater o vírus das desigualdades e garantir o alimento e um trabalho digno para todos, apoiando quantos não têm sequer um salário mínimo e passam por grandes dificuldades. […][D]esenvolver, com políticas adequadas, o acolhimento e a integração, especialmente em favor dos migrantes e daqueles que vivem como descartados nas nossas sociedades. (5)
No meio destas acções, refere-se também a fome como um “escândalo,” apontando para a necessidade urgente do seu desaparecimento (6). Ao fazermos tudo isto, ou apenas uma parte conforme as nossas capacidades e os nossos talentos, não estaremos a fazer mais do que a seguir Cristo para “construir um mundo novo e contribuir para edificar o Reino de Deus, que é reino de amor, justiça e paz” (7).
O último parágrafo contém uma chamada final de atenção para a importância da história, porque nós somos seres históricos de corpo e alma, mesmo transcendendo essa condição. A história de cada pessoa inscreve-se numa história maior da humanidade, que, em diversos momentos, em vez de aprender com os seus erros, os repete de forma cega ou esquecida ou irresponsável ou das três formas em simultâneo. Que Nossa Senhora, Rainha da Paz, nos conduza a Deus e nos afaste das guerras que ferem e separam a humanidade. Saibamos nós reconhecer, mesmo que nos custe, que o triunfo da discórdia entre os seres humanos é, na verdade, um sinal de um desacordo com a vontade de Deus. Não adianta rezarmos para que seja feita a vontade de Deus na oração do “Pai Nosso,” se a nossa vontade segue o sentido contrário. Como escreveu Frei Bento Domingues numa crónica recente no Público: “Não é Deus que precisa das nossas orações” (8). Somos nós que precisamos de rezar para mudarmos e nos abrirmos ao dom de Deus. Olhemos para Jesus para curarmos os nossos olhos e alterarmos a nossa visão. Nele a vontade humana e a vontade divina coincidiram. Também a nossa vontade deve aspirar a esta perfeição, não como se fosse uma imposição do alto, mas é isso que nos realiza completamente como seres humanos, como filhos de Deus. São Paulo sintetiza este caminho de fidelidade a Deus e a nós próprios: “Não vos acomodeis a este mundo. Pelo contrário, deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade, para poderdes discernir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito.” (Rm 12,1-2).
1/02/2023
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(1) Papa Francisco, “Mensagem para a Celebração do 56.º Dia Mundial da Paz,” 5.
(2) Ibid.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) Ibid.
(6) Ibid.
(7) Ibid.
(8) Frei Bento Domingues, OP, “Não é Deus que precisa das nossas orações,” Público, 24 Jul. 2022, https://www.publico.pt/2022/07/24/opiniao/opiniao/nao-deus-precisa-oracoes-2014637.