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O Cinema como Oficina de Esperança

A 15 de Novembro de 2025, o Papa Leão XIV recebeu no Vaticano um grupo de profissionais do cinema, num encontro promovido pelo Dicastério para a Cultura e a Educação, cujo Prefeito é o Cardeal José Tolentino de Mendonça.

O Cinema como Oficina de Esperança

Sérgio Dias Branco é professor da Universidade de Coimbra, dirigente da CGTP-IN, e leigo da Ordem Dominicana da Igreja Católica.

O discurso proferido pelo Papa neste “Encontro com o Mundo do Cinema” oferece-nos uma reflexão estimulante sobre o papel do cinema e da cultura num mundo marcado por profundas transformações tecnológicas, ecológicas e sociais. Para quem está comprometido com a justiça, a fraternidade, e a ecologia integral, as suas palavras são mais do que relevantes: são provocadoras no melhor sentido, desafiando-nos a pensar como a arte pode servir o interesse colectivo, o diálogo, e a dignidade humana.

O pontífice descreve o cinema como uma oficina de esperança, uma arte popular no sentido mais pleno — acessível, comunitária, capaz de consolar o mundo, mas também de o interpelar. Esta caracterização está profundamente ligada à promoção de uma cultura de diálogo, de um encontro real entre diferenças, num mundo frequentemente dominado por discursos polarizados e dinâmicas reiteradas de confronto. Para Leão XIV, a sala de cinema é um limiar privilegiado onde a imaginação se abre e onde o espectador é convidado a sentir, a pensar, e a colocar-se no lugar do outro. Ao alertar para o risco de que o cinema seja comprimido em lógicas algorítmicas e esquemas narrativos padronizados, o Papa aponta para uma ferida cultural dos nossos tempos: a perda da complexidade, do risco, e do verdadeiro encontro humano na arte.
Um dos eixos mais fortes do discurso é o apelo à escuta e à valorização das diferenças, sobretudo das pessoas e comunidades que raramente encontram espaço na esfera pública. Leão XIV sublinha que o cinema, quando fiel à sua vocação ética e estética, deve abrir espaço a múltiplas experiências humanas e resistir à tendência para a homogeneização cultural. Embora a formulação usada por alguns meios de comunicação não corresponda literalmente ao texto oficial lido no encontro, o sentido é claro: a arte tem a responsabilidade de iluminar zonas de sombra, aproximando o público de vidas e dores que permanecem invisíveis. Esta preocupação articula-se directamente com os valores da justiça social, através da inclusão de vozes historicamente marginalizadas. Ao mesmo tempo, o Papa lembra que a verdadeira arte não transforma o sofrimento em espectáculo, mas trabalha a partir dele com cuidado e profundidade, sustentando uma ética da responsabilidade e empatia.

A reflexão de Leão XIV sobre o desaparecimento das salas de cinema de proximidade é também particularmente significativa. Ele afirma que a perda destes espaços não é apenas um problema económico, mas uma ferida cultural e comunitária: a morte de lugares de encontro, de presença mútua e de experiência partilhada. Esta preocupação encaixa na defesa da ecologia integral, que não se limita à protecção ambiental, mas abrange a economia, a cultura, as relações humanas, o uso dos recursos e a vida quotidiana. Defender o cinema enquanto espaço físico — como locus do encontro social — é também defender a riqueza das expressões culturais, a economia da proximidade, o interesse colectivo, e a vitalidade democrática das cidades.

Ao sublinhar o carácter comunitário da produção cinematográfica, o Papa toca numa dimensão que nem sempre é visível: o papel dos trabalhadores invisíveis da cultura. Técnicos diversos, membros das equipas de produção, responsáveis pela direcção de fotografia, pelo som, pela montagem, pela direcção de arte, pela caracterização, pela maquilhagem e pelos cabelos, pelo guarda-roupa, pelos efeitos especiais, e pela banda sonora original — todos estes profissionais são parte essencial de um processo criativo que constitui uma verdadeira comunidade, muito para além do papel de quem realiza o filme. Esta valorização do trabalho alinha-se com a primazia deste sobre a maximização do lucro e com a sua dimensão de realização humana no tecido económico e cultural. Dizer que um filme é “uma obra coral em que ninguém basta a si mesmo” é torná-lo numa metáfora da sociedade justa e solidária a construir.

O discurso apresenta ainda um convite à lentidão, ao silêncio, e à atenção. Num tempo de hiperprodução digital, de consumo rápido e disperso, Leão XIV reivindica o valor da contemplação, do ritmo humano, e da profundidade estética e ética. Este apelo encontra forte ressonância na ideia de que não basta produzir e consumir: é necessário criar espaços de escuta, de demora, e de concentração. Tal como a ecologia integral nos ensina a respeitar os ritmos da natureza e da vida, também uma ecologia da cultura — integrada na anterior — exige tempo, cuidado e discernimento.

O texto do Papa é, assim, muito mais do que uma reflexão sobre cinema: é um apelo a uma cultura que possa servir a fraternidade, a justiça, a dignidade humana, e o cuidado da casa comum. Quem se empenha na transformação social pode extrair três desafios essenciais desta reflexão de Leão XIV. Primeiro, promover narrativas que dêem voz aos marginalizados e ampliem a representação da diferença. Segundo, defender os espaços culturais como bens comuns, essenciais à vida democrática, e à saúde das comunidades. Terceiro, cultivar tempos e práticas de contemplação, resistindo à lógica frenética e superficial do consumo digital. Por fim, ressoa uma pergunta que se dirige a todas e todos nós: que função podem ter o cinema, a arte, a cultura, e a nossa própria imaginação, na construção de um mundo mais justo, mais fraterno, e mais habitável? A resposta exige criatividade e compromisso.

12/12/2025

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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