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A fraternidade como horizonte

José Tolentino Mendonça comentou há poucos anos, com uma certa inquietação, que os católicos à esquerda “entraram numa espécie de clandestinidade — são clandestinos”. Esta constatação pode facilmente ser estendida a membros de outras comunidades cristãs e a crentes de outras religiões.

A fraternidade como horizonte

Sérgio Dias Branco é professor da Universidade de Coimbra, dirigente da CGTP-IN, e leigo da Ordem Dominicana da Igreja Católica.

As pessoas religiosas que se situam e intervêm à esquerda do espectro político vivem, regra geral, escondidas, pelo menos desde o 25 de Abril. A história tem-se encarregado de lembrar a importância indesmentível dos grupos religiosos progressistas de antes da Revolução de Abril, na luta contra a ditadura fascista e a guerra colonial, pela liberdade e pela democracia. Nós vimos desta memória viva.

Em grande parte, esta condição de clandestinidade tem sido imposta por uma ideologia que limita as opções políticas de quem professa uma religião — uma pessoa é religiosa e daí decorre automaticamente a sua filiação política... à direita. Deve reconhecer-se também que, por vezes, esta é uma condição auto-imposta por religiosos com simpatias progressistas ou então dada por adquirida, sem exame crítico, por activistas políticos à esquerda. Esta auto-imposição e este preconceito são efeitos da poderosa influência ideológica já descrita.

Terra da Fraternidade pretende contrariar este contexto, procurando refazê-lo, definindo e cultivando um espaço de liberdade, encontro, e união para as pessoas religiosas de esquerda.

Considere-se a causa dos trabalhadores, massacrados nesta economia que tira a vida em vez de a promover. A solidariedade, cooperação, e unidade entre trabalhadores urge. É a religião uma barreira ou uma ponte para que tal aconteça? Eis uma questão crítica. A resposta não é simples, porque a religião é um fenómeno complexo que muitas vezes expõe contradições evidentes que dilaceram a sociedade. A religião tanto pode afastar as pessoas da luta pela transformação emancipadora do mundo como pode estimulá-las a participarem nela. A religião é politicamente ambivalente. Isto é, a função social da religião é um campo em permanente contestação.

Quem é explorado, descartado, excluído, privado de direitos básicos e do fruto do seu trabalho, pode encontrar um apoio na religião que ultrapassa o mero consolo, mas é um elemento de força impulsionadora para mudar esse estado de coisas. A religião permite às pessoas interpretarem e enfrentarem os seus problemas, não apenas reconhecê-los e aceitá-los como uma fatalidade. O activismo político é uma resposta concreta que pode ser alimentada pela crença religiosa, pelo seu profundo sentido de justiça e de esperança — e assim tem sido em muitos casos exemplares.

Talvez o elemento religioso fundamental para esta discussão seja a ideia da origem comum e logo de um laço de irmandade no interior da vasta comunidade humana. Isso quer dizer também que a fraternidade não pode ser um mero chavão, proclamada enquanto se aceita, e até celebra, a desigualdade social. Só pode ser um projecto, um horizonte, um vínculo necessário para um outro mundo mais completamente humano a ser construído por muitas mãos, em igualdade e amor ao próximo. Na “Grandôla, Vila Morena” de José Afonso, canção que capta o espírito da nossa revolução, ao se cantar a “terra da fraternidade” também se cantam as qualidades desse lugar onde “o povo é quem mais ordena” e onde podemos encontrar “em cada rosto igualdade” e “em cada esquina um amigo”.

28/09/2022

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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