Reflexão: D. Januário Torgal Ferreira
Vergonhosa é a injustiça que cria a pobreza
D. Januário Torgal Ferreira é bispo emérito das Forças Armadas e Segurança.
Tinha razão o norte-americano, sem nome, que todas as sextas-feiras se postava diante da Casa Branca de bandeira em punho, revelando-se contra a guerra do Vietname. Contrariado por um jornalista, que lhe referiu que jamais conseguiria os seus intentos, limitou-se a responder: “Mas eu não estou aqui para mudar o mundo, venho a este lugar todas as semanas com uma intenção: a de que as pessoas não me roubem a convicção que alimento!”.
É essa também a certeza que me motiva a transmitir a todos com a mais sentida estima a luta pela transformação do nosso país, o qual, na hora que passa, alberga cerca de dois milhões e trezentas mil pessoas em risco de pobreza ou exclusão social, com o acrescento, já estudado, de que serão precisas 5 gerações para que a injustiça diminua/desapareça!
O meu propósito de os servir com a liberdade da palavra é o mesmo que há 20 anos pronunciei naquele rés-do-chão do Hotel Roma, em Lisboa, em sessão presidida pelo Sr. Prof. Urbano Tavares Rodrigues. Em oposição à tragédia da guerra do Iraque. Se todas as guerras são iníquas, a do Iraque foi uma das maiores mentiras orquestradas para assassinar uma multidão de pobres!
É também a certeza de um drama, nascido da experiência, diria até da materialidade da vida, do trabalho e dos trabalhadores, que me inspira a deitar ao papel alguns pensamentos sobre a situação da pobreza entre nós.
Estamos a viver tempos difíceis para a justiça e a racionalidade, para a solidariedade e para a fraternidade, a propósito de uma humanidade desfavorecida. Esta é uma hora de justiça e de coragem em ordem à opressão e ao sofrimento.
A pobreza não é vergonhosa, mas sim a injustiça que cria a pobreza, cabendo à força de cada um e dos que aceitaram servir esta sociedade como responsáveis políticos, a energia pública de libertar o pobre da injustiça de ser pobre. Vergonha devem ter os cidadãos e os decisores da causa comum desta chaga herdada e em agravamento constante! A tentação de olhar para os lugares cimeiros impede esta sociedade de olhar para baixo, para o seu rés-do-chão, sem as condições mínimas de habitabilidade e de decoro humano.
É muito fácil proclamar-se que a política deve estar próxima das pessoas e dos seus problemas. Mais fácil ainda é afirmar-se que fundamentalmente é fazer parte da solução, e nunca do problema. Mas as angústias de cada instante batem à porta do rés-do-chão sem que surja carteiro com a mensagem da libertação.
Ao sublinhar-se a primazia dos direitos de cada ser humano, reconhece-se a necessidade e as urgências que cicatrizam a sua dignidade. Se não reconhecermos que o minúsculo ser humano infantil tem um fim a cumprir e que é necessário darmos-lhe os respetivos meios, como podemos falar dos seus direitos? A luta pela liberdade torna-se uma exigência dura e permanente à medida que à minha volta, e à volta do grande mundo, me surgem os novos escravos desta civilização!
Como será possível pôr em marcha um projeto pessoal de estudo e realização humana, se os meios indiscutíveis em ordem à prática desse projeto, não só não aparecem como, de forma mais pavorosa, nos deixam a impressão de estarem a ser roubados (ou na língua hipócrita da cidadania, a ser desviados)?!
A escravidão da doença, da ausência de habitação condigna ou de emprego que se persegue; da impossibilidade de ser reconhecido num trabalho que fecha a porta a qualquer subida, o mesmo sucedendo ao seu irmão gémeo, que é o salário; a escravidão de um lote de pessoas, as quais são sempre as mesmas, a aguentar um vexame de não serem tratadas como protagonistas do bem-estar…
Relativamente à habitação, não devo silenciar a minha recusa diante de tantos dos meus cidadãos que foram rebocados do sítio onde nasceram e viveram, para serem depositados, como sólida pesagem, em terrenos destinados a trânsfugas.
Não terei razão… Mas, sendo culpado, não estive suficientemente desperto diante de fenómenos da “emigração” interna…
Apetecia-me citar Nietzsche quando sublinha: “Que é para ti a coisa mais humana? Poupar alguém à vergonha?”
Acrescento eu: “não é só poupar à vergonha, é poupar à indignação e à revolta, que amesquinham um viver, roubando-lhe esperanças e honras, a que têm direito. Um escravo é um decepado! Aprisionaram-no ao privá-lo de um sentido do viver”.
A expressão tão nossa, e lamentavelmente tão repetida, “não há direito”, significa que algo vai mal, que alguma coisa foi mal orquestrada, que o direito que devia chegar até nós, se perdeu pelo caminho… Não há direito!
Mas acrescentemos: “As revoluções ou simples mudanças da existência nascem deste digno bradar de alguém traído!”
Numa palavra: “Quero justiça! Não quero remendos! Quero a verdade! Não quero enganos! Quero camaradagem! Não quero assobios para o ar!”
Em Portugal existem alguns tipos significativos de relacionamento com esta matéria de pobreza.
– A primeira é da indiferença, ainda que, por vezes, se esconda no véu da hostilidade;
– A segunda é a triste mentalidade de “o meu pobre” (o pobre que eu visito, o pobre de que eu preciso para lavar a consciência);
– A terceira, a única que respeito, é a luta contra a pobreza. Estar ao lado dos pobres, falar dos pobres, ouvir os pobres, apoiar os pobres. Só com um fito: libertá-los da pobreza! Lutar social e politicamente para que sejam os pobres, livres do que parece um “fado” ou uma má sina. “É o destino”, como alguns me dizem. Onde chegou a falta de liberdade, e, por isso da democracia, para que famílias por inteiro se julguem determinadas, isto é obrigatoriamente, a ser o que não são!
Todos teremos culpa. Todos temos de advogar e praticar cuidados e remédio!
Se há hoje pessoas que dos supermercados juntam (não sei se é delito fazê-lo em maré de fome) alguns alimentos, deveriam soar bem alto as sirenes da aflição! Como é possível?! É-o, pelos vistos. Um poder ao serviço dos mais fracos mostra–se por obras. Deixo aqui o clamor de um cidadão a favor de uma cidadania onde os menos possibilitados tenham lugar!
O que fazer?
“A propósito da justiça. Veja-se, por exemplo, o que se está a passar no mundo das relações laborais. Trabalhadores que não são devidamente remunerados, a quem se exigem horários e ritmos de trabalho stressantes e incompatíveis com uma conciliação sadia da vida profissional com a vida familiar, abuso no recurso a empregos de precariedade e sem garantias mínimas, etc., etc.)”.
Libertar a pobreza é “em concreto”: Como será possível ter uma consulta, uma operação, um encontro com um médico que nos salve? Como será o dia de amanhã sem uma esperança e um apoio tão legítimo? Sou um utente do Serviço Nacional de Saúde, conheço os méritos e os obstáculos. Como deitar a mão a gente que padece e confia?
Termino. Não sei se as convicções bastam! Não sei se as minhas certezas da transformação do Mundo, serão, na prática, a defesa dos outros, tão abandonados. O mais importante são os outros. Se eu me calar, se nós nos calarmos, a ditadura da injustiça prosseguirá.
Não queria que fosse assim. Ajudem-me com a vossa perseverança a eu ter convicção de que me bater pelos outros mais injustiçados é o maior combate por um Futuro nobre e pacífico!
Porto, 22 de Outubro de 2022
Republicado com autorização do autor. Originalmente publicado em: https://erradicarapobreza.wordpress.com/2022/10/23/intervencao-escrita-de-d-januario-torgal-ferreira-para-o-debate-realizado-do-porto/.
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