
Reflexão: Sérgio Pratas
Não podemos ficar indiferentes
Sérgio Pratas é jurista, Secretário da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, dirigente da Confederação Portuguesa das Coletividades de Cultura, Recreio e Desporto, e católico.
Vivemos hoje tempos duros (em Portugal e em muitas outras latitudes). A pandemia teve um impacto tremendo – e não apenas ao nível da saúde. Como veio revelar o relatório “Pobreza e exclusão social em Portugal” (2022): “O impacto da pandemia nas condições de vida e rendimento da população em Portugal foi muito forte. A população em risco de pobreza e exclusão social aumentou em 12%.”
A este cenário, nada favorável, e sem que tenha havido tempo para recuperar, acresce agora o problema da inflação, com reflexos nas condições de vida da maioria das famílias. Há idosos a morrer por falta de assistência médica e medicamentosa; há muitos portugueses que passam fome; há jovens a crescer em condições deploráveis; a habitação passou a ser uma miragem. Tudo isto conduz ao sofrimento, à frustração, à exclusão.
E o que é que podemos fazer? Há pelo menos dois caminhos alternativos a considerar. O caminho do assistencialismo, que se traduz em oferecer as “migalhas da mesa” para os que menos têm. Dar qualquer coisa a quem estende a mão.
A ideia-chave deste caminho é a de que sempre houve pobres e sempre haverá. O foco deve ser ajudar os mais pobrezinhos, os que estão em situação de privação material severa.
Mas esta ideia está errada. É preciso olhar para o longo prazo para perceber que a pobreza (as diversas pobrezas) e as injustiças sociais não são uma inevitabilidade. E não é preciso ir muito longe. Veja-se o caso de Portugal e toda a transformação ocorrida com a Revolução de Abril. É possível fazer diferente.
A história mostra-nos, pois, que há um outro caminho, bem mais profícuo e justo. O Papa Francisco resume-o muito bem: “Quando falo de solidariedade, refiro-me a muito mais do que à promoção de obras filantrópicas e/ou a financiar assistência àqueles que saem a perder. Porque a solidariedade não é partilhar as migalhas da mesa, mas fazer com que, na mesa, haja lugar para todos” (Sonhemos Juntos).
E como é que lá chegamos? Que contributo posso dar? Como é que se transforma a sociedade, neste e noutros planos?
O primeiro passo é o da consciência. Não podemos ficar indiferentes a todas essas injustiças sociais. É fundamental ter consciência das suas causas, das suas consequências devastadoras.
Depois, temos que estar muito atentos a respostas fáceis e tentadoras, como as dos movimentos e partidos populistas, que se servem demagogicamente dos mais frágeis para atingir os seus fins; e que escondem uma agenda claramente ao serviço dos interesses económicos dos poderosos.
O passo seguinte é o da ação. E podemos concretizá-lo em diversos planos. Destacaria três:
— o plano individual, ou pessoal: agir onde estamos, com quem estamos, com os recursos que temos. Passa por saber ouvir o outro, criar laços sólidos, ajudar a refletir sobre os problemas e apoiar com o que estiver ao nosso alcance;
— associando-nos a outros, para poder fazer a diferença. Há diversas associações que têm um papel relevante no apoio aos idosos, às crianças, às pessoas com deficiência; em defesa do trabalho com direitos. Quando participamos nessas associações (como associados ou dirigentes), estamos a dar um importante contributo;
— o plano da intervenção política. Não nos podemos esquecer que é “um ato de caridade, igualmente indispensável, o empenho com o objetivo de organizar e estruturar a sociedade de modo que o próximo não se venha a encontrar na miséria” (Conselho Pontifício “Justiça e Paz”). É preciso transformar a sociedade, tomar partido. E lutar!
Acrescento apenas duas notas finais. A primeira, para lembrar que a Constituição portuguesa pode (e deve) guiar-nos neste processo de transformação social. A segunda para, novamente com o Papa Francisco (Fratelli Tutti), referir a centralidade do trabalho: “A grande questão é o trabalho (…). Numa sociedade realmente desenvolvida, o trabalho é uma dimensão essencial da vida social, porque não é só um modo de ganhar o pão, mas também um meio para o crescimento pessoal, para estabelecer relações sadias, expressar-se a si próprio, partilhar dons, sentir-se corresponsável no desenvolvimento do mundo e, finalmente, viver como povo.”
18.01.2023
A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.