Reflexão: Emanuel Nogueira
"Não vos conformeis com este mundo"
Emanuel Nogueira é licenciado em Filosofia, doutorando em Estudos Clássicos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, com bolsa da FCT, e católico.
Muitos cristãos indignam-se, justamente, com aqueles que consideram ser os males da sociedade contemporânea, contrários à moral cristã, ao mesmo tempo que se mostram perfeitamente indiferentes, tolerantes ou até adeptos convictos do sistema económico dessa mesma sociedade, o capitalismo. Lamentam o consumismo, o individualismo, a indiferença, a fragilização da família, o apego aos bens materiais, a banalização da sexualidade, enfim, a cultura decadente instalada, ao mesmo tempo que exaltam o capitalismo ou, pelo menos, se mostram conformados com ele. Tomam-no alguns, desconfiados da natureza humana, não como sistema-modelo, mas antes como aquele a que podemos aspirar, um sistema que, com todos os seus defeitos, mostrou ser aquele que mais bem consegue satisfazer as necessidades humanas e providenciar um padrão de vida confortável a um número cada vez maior de pessoas.
O que se torna surpreendente é que a crítica a essa cultura não seja acompanhada por — ou, antes, integrada numa — crítica igual ao sistema económico que lhe subjaz, como se de dois dados isolados e não-relacionados se tratassem e não houvesse relação causal qualquer entre um e outro. Parece haver, assim, uma certa miopia que impede de olhar a realidade de forma integrada e ver que essa cultura é consequência desse sistema, ou, mais, que o capitalismo gera essa cultura e dela se alimenta.
Perante este quadro, podemos fazer dois apontamentos. O primeiro é que, por mais ginástica mental que possamos fazer, os princípios em que o capitalismo assenta e a cultura que gera são evidentemente contrários aos princípios do cristianismo e de uma cultura genuinamente cristã: um sistema assente na exploração, no crescimento infinito, na procura do lucro, na criação e multiplicação de desejos e necessidades artificiais, na acumulação de riqueza, na especulação, só com muito esforço e pouca honestidade pode ser conciliado com o Jesus de Nazaré, pobre e humilde, que exortava a que não acumulássemos tesouros na terra, mas no céu, que dizia ser mais difícil passar um camelo pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no Reino dos Céus, ou que enviava os seus discípulos “sem bolsa, nem alforge, nem sandálias” (Lc 10:4).
O segundo é que, de facto, o capitalismo, mesmo que assentando sobre princípios condenáveis de uma perspectiva cristã, gerou níveis de desenvolvimento económico e tecnológico nunca antes vistos e - ainda que, note-se, tantas vezes por concessões feitas às lutas e exigências de distribuição da riqueza, direitos laborais, etc. — permitiu elevar os padrões de vida de uma boa parte da população do globo (deixamos considerações sobre a exploração do terceiro mundo para outro momento). Mais, se bem geridos, racionalizados e orientados para a satisfação, e não a multiplicação, de necessidades, os recursos gerados pelo capitalismo poderiam não só providenciar uma vida digna a todos como também aliviar a humanidade do fardo do trabalho, libertando (e democratizando) tempo para o florescimento pessoal, cultural e espiritual dos indivíduos.
Resta-nos agora colocar a questão: qual deve ser a atitude do cristão perante essa realidade? Ocorre-me aqui invocar as palavras de Paulo na carta aos Romanos: “Não vos conformeis com este mundo” (Rm 12:2). Um inconformismo que brota dessa visão do Reino de Deus feito já presente na história por Cristo, em que “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher” (Gl 3:28), mas também desse horizonte apocalítpico da restauração cósmica do fim dos tempos, em que todos os principados, dominações e poderes serão destruídos e “Deus será tudo em todos” (1 Cor 15). O mesmo inconformismo que animou os primeiros cristãos de Jerusalém, que “viviam unidos e possuíam tudo em comum, vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um” (Act 2: 44-45), deve ser ferramenta de transformação da sociedade não só na sua dimensão espiritual e cultural, mas também na económica e política, porque dimensões indissociáveis umas das outras.
20.01.2023
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