A Igreja e a “doutrina da descoberta”: Cardeal Tolentino escreve sobre poder colonial e eliminação de culturas indígenas
17 de junho de 2023
O jornal “L’Osservatore Romano” publicou, a 30 de Março, uma Nota conjunta sobre a “doutrina da descoberta”, assinada pelo Dicastério para a Cultura e a Educação, dirigido pelo card. José Tolentino de Mendonça, e pelo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Publicamos os nove pontos do documento, seguindo-se a declaração do card. Tolentino de Mendonça sobre o texto.
Imagem: Vatican News
Nota sobre a “doutrina da descoberta”
Dicastério para a Cultura e a Educação, Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano
1. Fiel ao mandato recebido de Cristo, a Igreja católica esforça-se por promover a fraternidade universal e o respeito pela dignidade de cada ser humano.
2. Por este motivo, no decurso da História os papas condenaram os atos de violência, opressão, injustiça social e escravidão, incluído os cometidos contra as populações indígenas. Houve numerosos exemplos de bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e fiéis leigos que deram a sua vida em defesa da dignidade daqueles povos.
3. Ao mesmo tempo, o respeito pelos factos da História exige o reconhecimento de fragilidade humana e dos fracassos dos discípulos de Cristo em cada geração. Muitos cristãos cometeram atos malignos contra as populações indígenas em relação aos quais os papas recentes pediram perdão em numerosas ocasiões.
«A comunidade cristã nunca mais poderá deixar-se contagiar pela ideia de que uma cultura seja superior às outras, ou que seja legítimo recorrer a modos de coerção dos outros»
4. Nos nossos dias, um diálogo renovado com os povos indígenas, sobretudo com aqueles que professam a fé católica, ajudou a Igreja a compreender melhor os seus valores e as suas culturas. Com a sua ajuda, a Igreja adquiriu uma maior consciência dos seus sofrimentos, passados e presentes, devidos às expropriações das suas terras, que consideram um dom sagrado de Deus e dos seus antepassados, e às políticas de assimilação forçada, promovidas pelas autoridades governativas do tempo, com vista a eliminar as suas culturas indígenas. Como sublinhou o papa Francisco, os seus sofrimentos constituem um forte apelo a abandonar a mentalidade colonizadora e a caminhar com eles lado a lado, no respeito recíproco e no diálogo, reconhecendo os direitos e os valores culturais de todos os indivíduos e povos. A este propósito, a Igreja compromete-se a acompanhar os povos indígenas e a promover os esforços dirigidos a favorecer a reconciliação e a cura.
5. É neste contexto de escuta dos povos indígenas que a Igreja sentiu a importância de enfrentar o conceito denominado “doutrina da descoberta”. O conceito jurídico de “descoberta” foi debatido pelas potências coloniais a partir do século XVI e encontrou expressão particular na jurisprudência oitocentista dos tribunais de diversos países, segundo o qual a descoberta de terras por parte dos colonos concedia o direito exclusivo de extinguir, mediante aquisição o u conquista, o título ou a posse dessas terras por parte das populações indígenas. Alguns estudiosos sustentaram que a base da denominada “doutrina” encontra-se em vários documentos papais, como as bulas “Dum diversas” (1452), “Romanus pontifex” (1455) e Inter caetera” (1493).
A Igreja católica repudia os conceitos que não reconhecem os direitos humanos intrínsecos dos povos indígenas, incluindo aquele que se tornou conhecido legalmente e politicamente como “doutrina da descoberta”.
6. A “doutrina da descoberta” não faz parte do ensinamento da Igreja católica. A investigação histórica demonstra claramente que os documentos papais em questão, escritos num período histórico específico e ligados a questões políticas, nunca foram considerados expressões da fé católica. Ao mesmo tempo, a Igreja reconhece que estas bulas papais não refletiam adequadamente a igualdade de dignidade e de direitos dos povos indígenas. A Igreja também está consciente do facto de o conteúdo destes documentos ter sido manipulado para fins políticos pelas potências coloniais em competição entre elas, para justificar atos imorais contra as populações indígenas, cometidas por vezes sem a oposição das autoridades eclesiásticas. É justo reconhecer estes erros, reconhecer os terríveis efeitos das políticas de assimilação e a dor sofrida pelas populações indígenas, e pedir perdão. Além disso, o papa Francisco exortou: «A comunidade cristã nunca mais poderá deixar-se contagiar pela ideia de que uma cultura seja superior às outras, ou que seja legítimo recorrer a modos de coerção dos outros».
7. Sem meias palavras, o magistério da Igreja sustenta o respeito devido a cada ser humano. A Igreja católica repudia, por isso, aqueles conceitos que não reconhecem os direitos humanos intrínsecos dos povos indígenas, incluindo aquele que se tornou conhecido legalmente e politicamente como “doutrina da descoberta”.
8. Numerosas e repetidas declarações da Igreja e dos papas sustentam os direitos dos povos indígenas. Por exemplo, na bula “Sublimis Deus” de 1537, o papa Paulo III escreve: «Definimos e declaramos […] que [, …] os ditos indíanos e todos os outros povos que seguidamente serão descobertos pelos cristãos, não devem de modo algum ser privados da sua liberdade ou da posse dos seus bens, ainda que não sejam de fé cristã; e que podem e devem, livremente e legitimamente, gozar da sua liberdade d da posse dos seus bens; nem devem ser de modo algum reduzidos à escravidão; se acontecer o contrário, será nulo e não terá efeito algum».
9. Mais recentemente, a solidariedade da Igreja com os povos indígenas deu origem ao forte apoio da Santa Sé aos princípios contidos na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. A concretização destes princípios melhoraria as condições de vida e ajudaria a proteger os direitos dos povos indígenas, além de facilitar o seu desenvolvimento no respeito pela sua identidade, língua e cultura.
As intuições que enformam esta Nota são elas próprias o fruto de um renovado diálogo entre a Igreja e os povos indígenas. É escutando os povos indígenas que a Igreja está a aprender a compreender os seus sofrimentos.
A arte do encontro e a arquitetura da reconciliação
Card. José Tolentino de Mendonça
Ao falar das injustiças históricas e dos crimes de guerra na sua encíclica “Fratelli tutti”, o papa Francisco afirma que «é fácil hoje cair na tentação de voltar a página, dizendo que já passou muito tempo e que é preciso olhar para a frente. Não, por amor de Deus! Sem memória nunca se vai para a frente, não se cresce sem uma memória íntegra e luminosa» (n. 249).
Na Nota sobre “Doctrine of Discovery” (publicada hoje pelo Dicastério para a Cultura e a Educação e pelo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral), a Santa Sé examina atentamente a história da igreja e a sua deplorável associação com a doutrina da descoberta, que foi invocada por várias potências coloniais contra as populações indígenas, em diversas partes do mundo, para justificar a expropriação da sua história e a subvalorização e eliminação das suas culturas.
A nota reconhece que as bulas papais sobre as quais as potências coloniais apoiaram as suas pretensões não refletiam adequadamente a igualdade de dignidade e os direitos dos povos indígenas, e que os documentos foram manipulados por aquelas potências para justificar atos imorais que foram perpetrados contra eles, por vezes sem a oposição das autoridades eclesiásticas. A doutrina da descoberta não fazia parte do ensinamento da Igreja católica, e é repudiada nesta Nota; mas este trágico evento recorda-nos a necessidade de permanecer cada vez mais vigilantes na nossa defesa da dignidade de todos os seres humanos e da necessidade de crescer na consciência e no apreço pelas suas culturas. Especificamente, como nos recordou o papa Francisco na sua encíclica “Laudato si’”: «É indispensável prestar especial atenção às comunidades aborígenes com as suas tradições culturais… Para elas, com efeito, a terra não é um bem económico, mas um dom de Deus e dos antepassados que nela repousam, um espaço sagrado com o qual têm a necessidade de interagir para alimentar a sua identidade e os seus valores» (n. 146).
Esta Nota faz parte daquela que poderemos chamar a arquitetura da reconciliação, e é também o produto da arte da reconciliação, o processo no qual as pessoas se comprometem a escutar-se, a falar-se e a crescer na compreensão recíproca. Nesse sentido, as intuições que enformam esta Nota são elas próprias o fruto de um renovado diálogo entre a Igreja e os povos indígenas. É escutando os povos indígenas que a Igreja está a aprender a compreender os seus sofrimentos, do passado e do presente, e as nossas insuficiências. É no diálogo cultural que estamos comprometidos a acompanhá-los na busca da reconciliação e da cura. Devemos viver a arte do encontro.
Originalmente publicado em Sete Margens: https://snpcultura.org/a_igreja_e_a_doutrina_da_descoberta.html