Lisboa entre o lucro e a descaracterização: a crise da gentrificação e turistificação
Lisboa tem-se afirmado como destino turístico global, mas esse sucesso esconde um processo profundamente desigual de transformação urbana.

Luís Mendes é geógrafo, professor Instituto de Geografia e Ordenamento do Território e investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, e dirigente associativo.
Alavancado por políticas neoliberais e programas de incentivo ao investimento externo, a capital portuguesa tornou-se palco de uma intensa financeirização do mercado imobiliário, impulsionando a gentrificação e, mais recentemente, a turistificação dos seus bairros históricos.
A gentrificação consiste na substituição das populações de menor rendimento por classes médias-altas, expulsando residentes tradicionais através da subida de preços e rendas. Já a turistificação refere-se à especialização extrema de certas zonas urbanas no turismo, transformando bairros em meros palcos para consumo e alojamento temporário. Ambas dinâmicas estão interligadas: o crescimento do Alojamento Local (AL) e da hotelaria, sobretudo em zonas como Alfama, Misericórdia ou Santa Maria Maior, retirou milhares de habitações do mercado residencial, provocando um aumento dramático dos preços — com subidas superiores a 160% na venda de imóveis e 86% nas rendas na última década.
Entre 2009 e 2021, o número de unidades de AL passou de 46 para mais de 19 mil. Simultaneamente, os hotéis mais do que duplicaram. O centro histórico de Lisboa tornou-se assim um território hegemonicamente turístico, onde os serviços e o comércio tradicional cederam lugar a negócios voltados para o visitante: lojas de souvenirs, restaurantes gourmet e marcas internacionais. Isto gerou uma economia local altamente dependente, frágil perante crises como a da COVID-19, e agravou a precarização do trabalho.
Além dos efeitos económicos e habitacionais, a turistificação altera profundamente o tecido social. A substituição dos moradores permanentes por turistas ou residentes temporários rompe redes de vizinhança e de solidariedade, descaracteriza os bairros e apaga identidades locais. A cidade perde autenticidade e converte-se num simulacro de si mesma — uma “Disney urbana” onde o quotidiano dá lugar à performance para o visitante e à autenticidade simulada. Isto agrava problemas como a alienação social, o ruído, a pressão sobre infraestruturas e a degradação ambiental.
Perante este cenário, há que: limitar o crescimento do AL e da hotelaria; mobilizar património público e privado para programas de habitação acessível; rever a legislação do arrendamento urbano, nomeadamente a chamada "Lei Cristas"; promover um turismo sustentável e descentralizado; e garantir um ordenamento urbano que integre as dinâmicas turísticas com a proteção do comércio local e da identidade dos bairros. A participação das comunidades locais deve ser central em todas as decisões urbanas.
Lisboa enfrenta um dilema entre o lucro imediato e sustentabilidade a longo prazo. Para que continue a ser uma cidade viva, justa e inclusiva, é essencial que as políticas urbanas ponham fim à lógica da cidade-mercadoria e devolvam à cidade o seu papel primordial: ser um lugar de vida.
6/06/2025
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