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Quem não está habituado

Quem não está habituado a decifrar a linguagem da generalidade dos partidos políticos e acolhe de boa fé as mensagens emitidas pelos seus representantes é levado a concluir que a expressão “reformas estruturais” significa uma mudança no sentido de eliminar vícios do funcionamento da governação e da Administração Central ou Local, tornando mais eficiente e produtivo o aparelho geral do Estado, em benefício do bem comum.

Quem não está habituado

Joaquim Mesquita é operário fabril do sector alimentação, dirigente da CGTP-IN, e militante da Base-FUT e da LOC-MTC.

Se considerarmos que quem anuncia estas “reformas estruturais” se identifica com políticas de direita, e neoliberais, não será difícil concluir que a meta é a destruição do Estado Social, de tudo o que é público, de tudo o que é sociedade. Como muito bem esclareceu a senhora M. Thatcher, a famosa “dama de pedra”, «Não existe sociedade, apenas o indivíduo. E, quando possível, a família».

Entretanto, uma vasta camada da população continua a sofrer com a austeridade que sempre condicionou a sua vida e que percebe a cada dia que passa vive em piores condições, numa sociedade marcada por crescentes desigualdades – há gente que nasce e vive toda a sua existência em situação de pobreza porque a estratégia que vigora é a de tirar aos pobres para dar aos ricos.

O actual projecto de revisão da legislação laboral representa um forte ataque aos trabalhadores e às suas organizações representativas. Pretende reduzir significativamente a actividade dos sindicatos junto dos trabalhadores nas empresas, ao mesmo tempo que ataca a contratação colectiva e procura desregulamentar as condições de trabalho, o que concederia ao patronato um poder arbitrário e progressivamente ilimitado de decidir não só sobre as condições de trabalho como também sobre as condições de vida de quem trabalha.

É o caso dos horários, aplicando o banco de horas individual, prolongando a jornada diária, fazendo uso indiscriminado e injustificado da laboração contínua, do regime de turnos, e do trabalho aos domingos e feriados – não olhando sequer ao facto dos trabalhadores terem familiares a cargo ou filhos menores. Este é apenas um aspecto de um cenário que se agrava quando a ele juntamos a precariedade das relações laborais e os baixos salários.

As condições de trabalho – na generalidade e de facto, de exploração – em que se encontra quem exerce uma profissão por conta de outrem têm conduzido muitos trabalhadores a situações de alienação, exclusão e marginalização. Sentem que não passam de meras peças de engrenagem, de mortos-vivos, de “robots” (“trabalhadores industriais escravos”). Sentem que o trabalho é factor de isolamento social e de desmembramento da família. Sentem que deixam de ser pessoas, em relação com os outros, para serem reduzidos à condição de indivíduos.

Esta realidade não é compatível com o pensamento cristão. Em mensagem que enviei ao episcopado português referi que o Homem foi esclarecido do facto de ter de comer com o suor do seu rosto (1) – nunca à custa do suor do seu semelhante, suor que frequentemente significa sofrimento, fome e até morte.
Houve sempre vozes a denunciar a exploração dos pobres e as desigualdades. Os profetas do Antigo Testamento, como Amós, proclamaram os seus oráculos (2). Os Santos Padres dos primeiros séculos do cristianismo, como S. Basílio, foram firmes na condenação das injustiças. Nos dias de hoje os profetas continuam a proclamar os valores da humanidade e da civilização, alguns pagando com a vida a sua coerência evangélica. A doutrina social da Igreja também é clara: “E se viesse a suceder que o operário, obrigado pela necessidade, ou por receio de um mal maior, aceitasse condições inferiores, que não pudesse recusar por lhe terem sido impostas pelo patrão, então estaríamos em face de uma violência contra a qual se insurge a justiça” (RN 34).

As comunidades cristãs, para serem coerentes com os princípios evangélicos e expressarem a razão da sua fé, que é o Reino de Deus, têm um papel profético a cumprir, e o primeiro sinal é tornar efectivo o princípio da opção preferencial pelos pobres, proclamando as Bem-Aventuranças e dando resposta a quem é pobre e explorado. E não nos esqueçamos que “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus” (3). Um alerta perante as teses situacionistas que pretendem conciliar as escandalosas desigualdades entre ricos e pobres. A luta pela Justiça não é uma opção dos cristãos, é uma missão que decorre do Evangelho, experimentada em comunidade. Seremos julgados pelos esforços que fizermos, ou não, para responder e vencer o sofrimento de quem passa fome, está doente ou só, ou sofre as consequências de um sistema político e económico degradante, fazendo do ser humano um mero “homo economicus” cujo destino é apenas produzir e consumir. Este governo pretende limitar ainda mais esta fórmula: este “homo economicus” passará a ser essencialmente produtor, reduzindo a condição de consumidor ao mínimo possível, sempre de acordo com o poder arbitrário do patronato, e debaixo do olhar cândido dos actores da “sociedade civil” creditados e acreditados por quem nos (des)governa.

3/10/2025

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(1) Gn 3,19
(2) Am 2,6-8
(3) Mc 10,25; Mt 19,24

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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