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Pode um budista lutar contra o karma?

A maioria de nós não integra a sua religião em todos os aspetos da sua vida. Encarnamos a moderna separação entre a Igreja e o Estado, escolhendo separar dentro de nós, de forma similar, o religioso e o mundano, face ao aparentemente contraditório e irreconciliável, talvez esmagados pela dificuldade de uma reflexão, talvez amedrontados pelas possíveis conclusões, talvez, simplesmente, porque até seja confortável. Não o devemos fazer.

Pode um budista lutar contra o karma?

Nuno Peixinho é investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço e da Universidade de Coimbra, dirigente do Sindicato dos Professores da Região Centro/FENPROF, e membro da Wild Flower Zen Sangha.

Quando me perguntam se sou religioso, a minha primeira resposta é não, pois não acredito num Criador. Porém, como praticante Zen, uma das múltiplas tradições Budistas, a minha resposta deveria ser outra. Não são apenas os católicos à esquerda que “entraram numa espécie de clandestinidade — são clandestinos”, como disse Tolentino Mendonça, os budistas à esquerda também.

No seu primeiro discurso, ou ensinamento, Buda enunciou as Quatro Nobres Verdades. Muito condensadamente: “Nascimento é sofrimento, envelhecimento é sofrimento e morte é sofrimento. Separação daquilo que gostamos é sofrimento, não obter aquilo que queremos é sofrimento: em suma, aquilo que é influenciado pelo apego é sofrimento. [...] É o desejo que renova a existência e é acompanhado pela cobiça e prazer, cobiçando isto e aquilo: ou seja, desejo pelos prazeres sensoriais, desejo por ser, desejo por não ser. [... o Cessar do Sofrimento] É o desaparecimento do último vestígio e cessação desse mesmo desejo; o rejeitar, o abandonar, o deixar e o renunciar do mesmo. [... o Caminho que Conduz à Cessação do Sofrimento é:] Entendimento Correto, Intenção Correta, Linguagem Correta, Ação Correta, Meio de Vida Correto, Esforço Correto, Atenção Plena Correta e Concentração Correta.” (Samyutta Nikaya LVI, 11).

Apenas lidas, não é de estranhar que muitos as interpretem como um convite à ativa aniquilação do desejo, em todas as suas formas e, consequentemente, um convite à passiva aceitação da sua sorte, destino ou karma. Mas a prática do budismo, não é uma simples aceitação de doutrinas, afirmações ou princípios. O Zen, em particular, pelas palavras do seu fundador, Bodhidharma, pauta-se por “uma transmissão especial fora das escrituras, sem dependência de palavras e letras, apontando diretamente para a mente/coração do ser-humano.” Para mim, é uma prática do ser, uma examinação e experienciação desta nossa realidade, uma prática para apreciar a vida em cada momento, independentemente do seu conteúdo, onde a cessação do sofrimento se constrói e há que construir — embora nada disto seja fácil. Às interpretações populares do karma, respondo com as palavras de Uchiyama Gudo (1874-1911), abade do Templo Rinsenji: “Agricultores rendeiros, vós que produzis alimentos, ... todos os anos terminam em escassez para vós. Que tipo de má-sorte é esta? É por causa do que os budistas chamam de má retribuição de vidas passadas? Sinceramente, se hoje, no nosso mundo do século XX, ainda sois enganados por este tipo de superstições, realmente acabareis como vacas e cavalos.”

2/11/2022

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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