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Quando a foice encontra a cruz: Conversa com Dean Dettloff acerca do cristianismo e da esquerda (5)

14 de abril de 2023

Por Alexander Shah (Class Colective)

Quando a foice encontra a cruz: Conversa com Dean Dettloff acerca do cristianismo e da esquerda (5)

Foto: Frei Betto fala em Havana, Cuba.

CC | O filósofo Jacques Ellul defendeu que as pessoas sentem uma necessidade essencial de uma experiência continuada com a espiritualidade. Observou ainda que, na nossa sociedade secular, a espiritualidade não foi erradicada, mas meramente deslocada e que vivemos, de facto, na mais religiosa de todas as épocas. Temos os nossos objetos sagrados: a revolução, o sexo, o estado da nação, a tecnologia, etc. Temos os nossos mitos: ciência e história. E assim por diante. Concorda com Ellul? Ou, mais concretamente, acredita que a religião e a espiritualidade terão sempre um papel a desempenhar na nossa sociedade?

DD | Enquanto antigo anarquista cristão, Ellul foi muito importante para mim numa dada altura da minha vida e assim suponho que seja adequado falar sobre ele neste contexto! Uma das coisas que Ellul faz bem é chamar a nossa atenção para a atenção, por assim dizer. Interessa-se pelo modo como as coisas nos cativam ou, em termos bíblicos, de que modo os humanos produzem ídolos que, por sua vez, nos produzem num processo repetitivo diabólico. Foi esta questão que levou a que Ellul se interessasse pelos situacionistas em França — aquilo a que Guy Debord alude como o “espetáculo” é, de certa forma, a tradução da tradição da crítica à idolatria nos termos da esquerda.

No entanto, devo confessar que nunca sei muito bem o que as pessoas querem dizer quando utilizam os termos “religião” ou “espiritualidade” e sinto-me nervoso quando esses termos são propostos como sendo características universais da experiência humana. É uma das razões pelas quais não aprecio muito Ellul. Ao enquadrar tais conceitos em termos de idolatria, Ellul apresenta uma supremacia cristã, de modo que a solução definitiva para todos os problemas da modernidade é a conversão a um cristianismo bíblico (segundo Ellul, reformado). Este filósofo, de facto, fez um inimigo da teologia da libertação, porque se tornou demasiado próxima do marxismo. A sua espiritualidade estava demasiado poluída pelo mundo.

Estou a esquivar-me um pouco à pergunta, deixe-me tentar responder dentro das condições previstas. Frei Betto, que mencionei atrás, observou que Cuba é um país que requer disciplina espiritual. Para aguentares ficar em filas, para lidares com diversas carências, para teres eleições participativas, enquanto enfrentas um bloqueio por parte dos Estados Unidos e ainda assim emergires de tudo isso com um sentimento de solidariedade — tudo isto implica um tipo de espiritualidade e abertura ao outro e ao futuro. Neste sentido, sim, a espiritualidade terá sempre um papel a desempenhar na sociedade. A forma como esse papel é canalizado, seja através da igreja, do estado, de uma comuna utópica, um movimento agrário, etc., é uma questão eternamente por resolver e essa abertura irá sempre exceder os formatos institucionais e a disciplina. Logo, terei de discordar com Marx e contrapor que, o que quer que queiramos dizer por “religião” e “espiritualidade” na melhor das intenções, não se irá diluir quando as pessoas tiverem o estômago cheio e a garantia de uma casa. Pelo contrário, libertos de limitações materiais, talvez nos encontremos a explorar novas dimensões da vida espiritual. E é a minha esperança que, se não for nada mais, um cristianismo liberto das amarras ao capital, ao feudalismo, e a outras formas de dominação, talvez ainda tenha também futuro nesse mundo. Não nos termos da verdadeira religião de Ellul, mas enquanto testemunho do sonho de Deus de um reino para os pobres, unidos pelo vínculo do amor.

Originalmente publicado em Class Collective: https://www.classcollectivemag.com/speaking-with-dean-dettloff-about-christianity-and-the-left

Tradução: Carla Ribeiro e SDB

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