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Quando a foice encontra a cruz: Conversa com Dean Dettloff acerca do cristianismo e da esquerda (4)

10 de abril de 2023

Por Alexander Shah (Class Colective)

Quando a foice encontra a cruz: Conversa com Dean Dettloff acerca do cristianismo e da esquerda (4)

Em 1979, a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FMLN) derrubou com a ditadura de Somoza na Nicarágua.
Foto: Susan Meiselas.

CC |Centrando-nos na questão da teologia da libertação, que papel pensa que o pensamento e a tradição cristãs podem desempenhar na ajuda a uma política marxista? Da mesma forma, que papel pode o Marxismo potencialmente ter no Cristianismo dos nossos dias e da forma como é praticado?

DD | Penso que a segunda questão é de resposta mais fácil, responderei primeiro a essa. Os cristãos progressistas têm muita aptidão para ficarem moralmente incomodados acerca das coisas certas, mas, no geral, não são assim tão bons quando se trata de descobrir e abordar as causas na origem das injustiças. Vivemos num mundo significativamente determinado por relações de classe, entre muitas outras relações opressivas. Numa economia capitalista, o trabalho e o capital possuem funções específicas, sendo que Marx fez um trabalho excecional de análise sobre quais são essas funções. Os trabalhadores geram riqueza. Se os trabalhadores não aparecerem, a riqueza não é produzida. É absolutamente fantástico quando os cristãos denunciam a riqueza obscena das classes abastadas e as condições dos pobres, mas o capitalismo consegue suportar a condenação moral sem problemas. O que não consegue suportar é a recusa ao trabalho porque é nesse que, em última análise, é aí que reside o poder numa economia capitalista, embora o maior parte das vezes esteja adormecido.

Ao chamar a atenção para a dinâmica de classes que opera na sociedade, o marxismo pode levar os cristãos a um melhor entendimento do capitalismo e de como se deve organizar contra este, indo além de oferecer uma palavra amiga. Ou, como uma vez me foi dito por Kathleen Schultz, uma freira da Igreja Católica, o marxismo tem um poder esclarecedor. Uma vez que tenhamos o esclarecimento, sentimo-nos com competência para agir. Penso que isso é essencial para os cristãos que vivem no núcleo imperial da nossa economia global, especialmente porque os nossos países são responsáveis por tanta violência, a qual ainda é defendida em termos cristãos. O marxismo pode ajudar-nos a arrependermo-nos da nossa participação na violência sistémica, ou o que os teólogos da libertação apelidariam de “pecado estrutural”. De facto, alguns teólogos da libertação, tais como o pastor presbiteriano de Cuba Sergio Arce, têm defendido que o cristianismo necessita do marxismo precisamente porque mostrámos que não conseguimos emanciparmo-nos sozinhos das relações de poder e da opressão que nos amarram. E, assim sendo, uma revolução marxista pode também significar a libertação do cristanismo, que já não conseguirá ligar-se à burguesia e será então capaz de fazer o que lhe foi pedido, pregar e viver a Boa Nova do ministério radical de Jesus. (“Pode” é, claramente, a palavra operativa neste caso, porque como já observei o marxismo tem com o cristianismo uma história tensa.) Assim: os cristãos precisam do marxismo para que possamos ver claramente o capitalismo e como nos libertarmos do seu jugo.

Quanto à primeira questão, é, como disse, a mais difícil, mas também a mais interessante. Quando penso naquilo que os cristãos podem ensinar aos marxistas, penso imediatamente em duas coisas. A primeira, é a categoria dos “pobres”. O “pobre”, mais do que o proletário é a principal categoria social da teologia da libertação. Nos pobres inclui-se a classe trabalhadora, mas também pessoas sem terra, camponeses e outras classes, bem como entidades marginais que não são essencialmente baseadas em classe. A teologia da libertação pretende unir todos os que são oprimidos numa luta popular e, no século XXI, esta foi uma peça fundamental para o êxito de governos de esquerda em países tais como a Venezuela, a Bolívia, o Brasil, e outros. Algo como isto está também presente em movimentos como os Panteras Negras e os Jovens Lords nos Estados Unidos, nos quais, aquilo a que Marx chamaria lumpemproletariado, acabou por revelar-se uma base notável para a organização contra o capitalismo. O marxismo tem o seu enfoque no proletariado enquanto classe por razões muito viáveis. A classe trabalhadora possui uma relação singular com o capital e a produção e, como tal, tem vantagens únicas em organizar-se. No entanto, grande parte do mundo nem sequer está proletarizado e vamos precisar de todas as pessoas, trabalhadores ou não, para combater o capitalismo. E quando eu mencionei que a recusa ao trabalho é a maior alavanca de poder, não é a única, como os movimentos populares mais uma vez demonstraram. Dado o estado debilitado do trabalho organizado nos Estados Unidos e no Canadá, não podemos colocar todas as nossas esperanças no movimento laboral, embora não possamos também, absolutamente, negligenciá-lo ou esquecê-lo.

A segunda categoria é o perdão revolucionário e, darei como exemplo algo muito tangível: a revolução Sandinista. A primeira coisa que os Sandinistas fizeram após terem chegado ao poder foi abolir a pena de morte. Isto é uma cisão com a tradição de esquerda dentro da qual todas as revoluções de sucesso acabavam com a execução dos opressores, dos inimigos da causa e outros desafortunados. Foi o fermento do cristianismo na massa da revolução que conduziu a essa resolução. O marxismo é excelente para te dizer o que deves odiar e eu considero que esse é um ponto pertinente. O cristianismo também tem uma história de ódio entre classes. Os marxistas afirmam que não vão dar desculpas para o terror, o cristianismo afirma que o ciclo de violência tem de acabar. O perdão revolucionário é duro, um trabalho difícil, meticuloso, mas é também a chave para a construção de um mundo melhor. A violência, mesmo a violência legítima, resulta sempre em dano moral, e as sociedades marxistas estão historicamente assombradas por danos. As revoluções necessitam de ser regeneradas e o cristianismo revolucionário tem oferecido uma alternativa real, aquela que os marxistas no seio dos Sandinistas reconheceram e metabolizaram.

Originalmente publicado em Class Collective: https://www.classcollectivemag.com/speaking-with-dean-dettloff-about-christianity-and-the-left

Tradução: Carla Ribeiro e SDB

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