Quando a foice encontra a cruz: Conversa com Dean Dettloff acerca do cristianismo e da esquerda (2)
5 de abril de 2023
Por Alexander Shah (Class Colective)
Foto: O dominicano Frei Betto conversa com Fidel Castro
CC | Grande parte da esquerda na América do Norte desconfia, instintivamente, da religião organizada. Muitas vezes apontam para a máxima de Marx, citando a religião enquanto “ópio do povo”. Observam ainda que a religião tem sido utilizada como ferramenta da classe dominante para manter, historicamente, hierarquias injustas. Considera que esta seja uma interpretação parcial? No caso de uma resposta afirmativa, como pode a esquerda reconciliar a religião e o seu próprio projeto político de forma significativa?
DD |Eu não Culpo as pessoas de esquerda pela sua desconfiança face à religião, pelo menos, face ao cristianismo, para ser mais exato (tentarei limitar-me a falar sobre cristianismo, em lugar de religião). Aquando do surgimento da esquerda industrial, no século XIX, as autoridades cristãs muitas vezes não eram uma ferramenta das classes dominantes e a esquerda, acertadamente, viu as igrejas institucionais (Católica, Protestantes, e Ortodoxa, de igual modo), como uma força da reação, agarrando-se ao grande latifúndio, ao poder político, e a uma vida de cariz mais feudal que tendeu a desaparecer quando o capitalismo se enraizou. Seja o que for que entendamos por lógica material e económica do colonialismo e por sistema mundial do capitalismo, o cristianismo foi o incentivador necessário para a expansão histórica do poder cristão na Europa e nas colónias. As bulas papais, o impulso missionário e as teologias de raça, por exemplo, funcionaram todas como peças-chave para o desenvolvimento do capitalismo. Uma vez que o capitalismo emergiu das sociedades cristãs, o cristianismo tem estado sempre implicado na perpetuação da exploração capitalista. Para falar sem rodeios, a título de exemplo, os Estados Unidos, o mais poderoso império da história do mundo, nunca teve um presidente que não fosse batizado numa qualquer variante das igrejas cristãs. Colocando sobre isto uma enormidade de escândalos morais e, obviamente, alguma epistemologia questionável, é fácil para mim simpatizar e reconhecer que tenho muito em comum com as pessoas de esquerda que não desejam qualquer tipo de relação com o cristianismo.
No entanto, penso que reduzir o Cristianismo ao seu papel na preservação de relações sociais injustas é enviesado e, se não for mais do que isso, é politicamente desfavorável. Cornel West escreveu em tempos, na Monthly Review, que precisamos de ser materialistas quanto baste para levar a religião a sério, para entendê-la enquanto parte da cultura das pessoas, especialmente da cultura das pessoas oprimidas. As vertentes radicais fizeram sempre parte do cristianismo, desde o comunismo primitivo das primeiras comunidades cristãs à sombra de Roma até às revoltas dos camponeses alemães que fascinaram Engels e Kautsky. No século XX, devido a um sem número de razões complicadas, os cristãos começaram a fazer o balanço dos abusos do sistema económico global de forma organizada, especialmente no Sul Global. As teologias libertárias das Américas e de África, a teologia de luta das Filipinas, o movimento das três autonomias na China, a teologia Minjung na Coreia e tantas outras, todas apontaram para a maleabilidade do Cristianismo e para a sua capacidade de tomar o partido dos oprimidos. Numa variedade de casos, o Cristianismo foi efetivamente uma força primordial dos movimentos revolucionários, talvez o mais dramático tenha sido a luta Sandinista, na qual quatro padres católicos se encontravam nas fileiras do governo revolucionário.
O facto é que a luta de classes atravessa o cristianismo, não apenas em oposição a este, da mesma forma que atravessa a arte, a literatura, e uma série de outras questões que os marxistas são muito bons a abordar com nuances. Relativamente às relações entre os Estados Unidos e a América Latina, por exemplo, muitas vezes temos uma visão cristã do imperialismo em confronto com uma visão cristã do anti-imperialismo. Este confronto chegou ao seu ponto culminante vezes sem conta, dado que os cristãos da América Latina ora obtinham êxito nas suas revoluções, como na Nicarágua, ou eram assassinados por esquadrões da morte treinados por cristãos nos Estados Unidos, talvez que o caso mais evidente seja o do Arcebispo Omar Romero, em El Salvador, cujos assassinos eram apoiados e patrocinados em termos materiais pelos cristãos de direita nos Estados Unidos. Se os marxistas fracassarem em reconhecer os conflitos e as contradições no seio do cristianismo, reduzindo toda a sua perceção a fantasia ou a ideologia, irão também fracassar na tentativa de perceber as verdadeiras lutas e as pessoas que perdem a vida ao participar nelas.
Relativamente à reconciliação da religião, mais especificamente do cristianismo, com a esquerda, não espero que os homens de esquerda que conheço e com os quais me organizo se venham a converter a esta religião. Mas todos os marxistas maduros com os quais me tenho cruzado compreendem o significado profundo e o papel que estas tradições têm na vida da classe trabalhadora. Fizeste referência à famosa máxima de Marx sobre o ópio. Mesmo antes dessa frase, Marx escreve que “A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma.” Claramente, Marx pretendia abolir o que no seu entendimento era a religião, mas os seus comentários têm um sentido muito mais sofisticado do que o tipo de ateísmo que alguma da esquerda preconiza.
Quando chegares a revolucionários de êxito no Sul Global, tais como Fidel Castro, irás encontrar uma perspetiva muito mais aberta sobre a religião, por exemplo, a conversa entre Fidel e o padre brasileiro Frei Betto, registada no livro Fidel e a Religião. Aí, Fidel comenta que, se nos focarmos unicamente na religião, iremos conduzir os homens de fé ao campo oposto, o dos contrarrevolucionários que os acolherão de braços abertos. Mesmo as campanhas ateístas da União Soviética foram incapazes de expurgar as pessoas do seu desejo de participar na vida espiritual, conduzindo assim a uma variedade de práticas e medidas contraditórias por todos os estados soviéticos. As políticas soviéticas relativamente à religião contribuíram ainda para o nascimento de movimentos internos de oposição muito poderosos, tais como o movimento Solidariedade na Polónia e, sem dúvida, houve muitas pessoas de fé arbitrariamente identificadas pelos estados comunistas cujo sofrimento foi absolutamente desnecessário.
Não estou a sugerir que não exista razão para suspeitar das igrejas estabelecidas ou de redes cristãs, as quais podem ser um veículo da influência externa e nostalgia por ordens económicas exploradoras, mas o marxismo, no seu conjunto, tem tido dificuldades em criar um espaço dentro das sociedades revolucionárias em progresso dentro dais quais os crentes se sintam parte em lugar de se sentirem como o inimigo. Existem algumas experiências instrutivas neste sentido em Cuba, em lugares como Kerala, na Índia, e uma série de outros exemplos no Sul Global. Porém, os marxistas do Norte Global nem sempre estão, lamentavelmente, a par destas histórias complicadas.
Seria suficiente dizer que, se não fosse por outra razão senão o seu desejo cínico de ganhar (embora eu pense que existem razões melhores e mais humanas), as pessoas de esquerda deveriam familiarizar-se com as formas dissidentes de cristianismo e, claro, com outras tradições dentro da fé, embora eu não seja a melhor pessoa a quem colocar esta questão. Em termos políticos, a esquerda necessita de reconciliar-se com os elementos do cristianismo que pretendam juntar-se à luta pela libertação, sendo isto o que normalmente acontece em movimentos bem-sucedidos.
Originalmente publicado em Class Collective: https://www.classcollectivemag.com/speaking-with-dean-dettloff-about-christianity-and-the-left
Tradução: Carla Ribeiro e SDB