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No 75º aniversário da 2ª Declaração Universal dos Direitos Humanos

Não se pode falar da Declaração dos Direitos Humanos de 1948, aprovada pela ONU, sem evocar a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada em 1789 no início da Revolução Francesa.

No 75º aniversário da 2ª Declaração Universal dos Direitos Humanos

Foto: Jornal Renovação

Jorge Sarabando é activista cultural com obras publicada sobre história contemporânea, antigo autarca, e dirigente do PCP, com o Curso de Defesa Nacional do IDN.

Na 1ª Declaração, eis alguns dos pontos essenciais:

- os homens nascem e são livres e iguais em direitos;
- são direitos naturais e imprescritíveis a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão;
- o princípio da soberania reside na nação;
- a lei é a expressão da vontade geral e é igual para todos;
- ninguém pode ser molestado pelas suas opiniões, religiosas e outras;
- todo o acusado é considerado inocente até ser declarado culpado;
- é livre a comunicação de ideias e opiniões, sendo prevenidos os abusos da liberdade de expressão;
- ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei;
- deve constituir-se uma força pública como garante da fruição dos direitos;
- a sociedade tem o direito de pedir contas a todo o agente público pela sua administração;
- não há Constituição sem separação dos poderes.

Estávamos em 1789.

Estes e outros direitos nela consagrados, significaram uma profunda ruptura numa sociedade senhorial e obscurantista, fundada na violência e na exploração, em que a burguesia despontava como classe revolucionária, e onde o povo, ainda que por escasso tempo, se tornou sujeito da História.

Vieram depois os exércitos estrangeiros, o bonapartismo, a restauração da monarquia, o regresso das velhas famílias. Nada pôde apagar os princípios aclamados, que passaram fronteiras, venceram distâncias e ganharam a consciência social de outros povos.

O que trouxe de novo a 2ª Declaração, já sob a égide da ONU?

Apenas alguns exemplos:

- os direitos são de todos, sem distinção de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de nacionalidade, de opinião, de origem social ou meios de fortuna;
- é proibida a escravatura;
- é proibida a tortura e tratos degradantes;
- é garantido o direito à privacidade;
- é reconhecido o direito ao casamento a partir da idade núbil, em igualdade e com o livre consentimentos dos cônjuges;
- a vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos, expressa através de eleições livres;
- todos têm direito à segurança social, ao trabalho, sendo o salário igual para trabalho igual, a uma remuneração quantitativa e satisfatória, à protecção contra o desemprego;
- todos têm direito a filiar-se em sindicatos;
- todos têm direito ao lazer, a um horário razoável e a férias pagas;
- a maternidade e a infância têm direito a assistência, sejam as crianças nascidas dentro ou fora do matrimónio;
- todos têm direito à educação, devendo o ensino elementar ser gratuito e obrigatório; o acesso ao ensino superior deve ser garantido apenas em função do mérito;
- todos têm direito à cultura, e à protecção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria.
- toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e beneficiar de asilo em outros países.
Através destes exemplos se pode avaliar a grandeza da mudança – da esfera individual dominante se passou para o domínio social e universal. Sem esquecermos que a afirmação da individualidade de cada ser humano e da cidadania tinha um conteúdo revolucionário. O clero e a nobreza tinham nomes e pergaminhos e honrarias e privilégios. O povo mais parecia uma massa inerte, sem benefícios que não derivassem do proveito ou da compaixão dos senhores.

O que se passou entre 1789 e 1948?

Houve as revoluções conduzidas pela burguesia na Europa, como as de 1830 e 1848, houve a emergência e o crescimento do movimento operário, houve a Comuna de Paris, em 1870, o movimento nacional libertador no continente americano, a Revolução russa de 1917, as revoltas anticoloniais na África e na Ásia, a vitória sobre o nazi-fascismo, em 1945. No final da guerra, por todo o mundo se levantou uma onda de esperança pela liberdade e a dignificação social. O “espírito de 45”, lhe chamou Ken Loach no seu memorável filme.(1)
Este bosquejo histórico permite-nos compreender que todos os direitos alcançados, e hoje inscritos na lei de múltiplos modos, não foram doação benévola dos poderes constituídos mas fruto, sempre, de uma luta multisecular de homens e mulheres, e de povos, pela melhoria da condição humana.

Ajuda-nos a compreender que a realização dos indivíduos é inseparável do progresso das sociedades em que estão inseridos.

Ajuda-nos a compreender que a paz, a liberdade e a igualdade são valores inseparáveis.

Na Mensagem da Paz seguinte à comemoração do seu 50º aniversário, em 1999, a Igreja reconheceu com clareza a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos.(2)

Mas esta luta milenar não se configura como um avanço contínuo pois sofre, por vezes, terríveis regressões, onde não faltam ambiguidades quanto à aceitação pública dos Direitos Humanos e a sua denegação prática. Foi o que aconteceu com Portugal, em 1949, quando, para entrar na NATO, teve, para vencer algumas reticências, de assinar a Declaração da ONU, embora Salazar governasse em flagrante contradição com muitos dos princípios e direitos nela inscritos.(3)

A época que vivemos é marcada pelo ascenso do neoliberalismo, também com avanços e recuos, em que a ditadura dos mercados procura sobrepor-se à democracia dos direitos.

Em 1973 no Chile de Pinochet e hoje na Argentina de Milei, entre muitos outros exemplos que se poderiam citar, os direitos políticos, económicos, sociais, culturais, são sacrificados aos imperativos do “deus mercado”.

É por isso essencial, neste ano em que se comemoram os 75 anos da Declaração da ONU, o debate e o escrutínio permanentes sobre os princípios e direitos proclamados e aceites por mais de uma centena de países do mundo e o seu respeito e cumprimento por todos.

Para que não chegue o dia em que se possa concluir que a Declaração é um belo documento, que todos aplaudem, mas um corpo estranho numa realidade que ”é como é”.

4/01/2024

A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.

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(1) “The spirit of’45”, filme de Ken Loach
(2) Mensagem pontifícia do Dia Mundial da Paz, de 1/1/99, “No respeito dos direitos humanos o segredo da verdadeira paz”, João Paulo II.
(3) “História da oposição à ditadura 1926-1974”, de Irene Flunser Pimentel, p.273, Figueirinhas, Porto, 2013.

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