Os crucificados menores de Saramago (1):
Uma arquitectura do sagrado
É de grande atualidade de O Evangelho Segundo Jesus Cristo quando, mais uma vez, tantos cristãos estão a trucidar-se uns aos outros em nome do mesmo Deus, nestes dias em que o absurdo da guerra, entre outros profundos nexos causais, na Europa, também é justificada por alguns hierarcas por motivos da religião.
Edgar Silva foi padre e é investigador no Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa e dirigente do PCP.
Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, mais do que versar sobre a história de Jesus desde a sua conceção até à sua crucificação, na companhia de Jesus, Maria, José, Maria Madalena, dos discípulos de Cristo e do diabo, Saramago é o “evangelista” que faz uma releitura de tragédias da humanidade, da tragédia de todo o humano, designadamente, da vida dos “crucificados menores”. O autor português constrói a história dos “crucificados menores” em confronto com o divino e o demoníaco, no fundo, a história da humanidade em prolongada busca de si mesma.
Ao longo da sua obra, José Saramago constrói cenários sociais, políticos e religiosos imersos numa iconografia judaico cristã, projetados segundo um profundo imaginário religioso.
Revelando exaustivo estudo de textos bíblicos, como é raro na história da literatura portuguesa, na liberdade da palavra, explorando um discurso conotativo, com um fluxo semântico torrencial, por vezes vertiginoso, Saramago desenha uma arquitetura do sagrado. Materializa a crítica do sagrado enquanto religião institucionalizada, como parte da ideologia de domínio social, enquanto componente dos mecanismos repressivos das sociedades. Na sua conceção do sagrado a religião institucionalizada mantém tanta gente num estado de adormecimento, de aceitação de sacrifícios, em resignação, impedindo que os humanos vivam plenamente a sua humanidade. Essa religião como que suga a vontade humana.
Quer seja através de monólogos intimistas ou reflexões sentenciais, quer seja por ditos proféticos, apartes e antevisões ou personagens e histórias trágico-maravilhosas, o autor de O Evangelho Segundo Jesus Cristo constrói narrativas de rituais religiosos, de quadros bíblicos, de tradições e relatos do judaísmo e do cristianismo. E naquela arquitetura do sagrado, Saramago inaugura uma nova linguagem sobre o fator religioso, relê a linguagem antiga, desnudando a ideologia ou desvelando as camadas de ideologia transportadas por determinadas interpretações dadas aos textos bíblicos, às instrumentalizações retóricas, políticas, sociais das figurações de Deus.
Na sua arquitetura do sagrado, no Evangelho, Saramago dessacraliza a palavra tida por sagrada pelos crentes. O narrador é o agente dessa dessacralização. Reproduz histórias da Bíblia para apresentar Deus tal como é mencionado em diferentes contextos no Antigo Testamento. Saramago utiliza as citações bíblicas, reapresenta-as, multiplica as citações ipsis verbis do Antigo e do Novo Testamento, para expor o que considera iniquidades de Deus.
Da história de Deus, conclui Saramago no seu Evangelho: é “uma história interminável de ferro e de sangue, de fogo e de cinzas, um mar infinito de sofrimento e de lágrimas” (1). Do relato acerca de Deus sentencia Saramago: “É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue” (2).
16/11/2022
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(1) José Saramago, O Evangelho Segundo Jesus Cristo (Lisboa: Caminho, 1998), 381.
(2) Ibid., 391.
(3) Moltmann, No fim, o início: breve tratado sobre a esperança (São Paulo: Loyola), 20.